SAÚDE

 



A

A

    

Doenças negligenciadas: como agir em plena crise climática

Diretor do Ministério da Saúde relata como Brasil está prestes a eliminar algumas das enfermidades causadas por fatores estruturais, que afetam em especial os mais pobres. Entre novas medidas, um programa de transferência de renda para o tratamento

Lançado há quase um ano, um silencioso programa do governo federal começa a trazer resultados importantes para a saúde pública na busca pela eliminação das chamadas doenças negligenciadas. Consideradas doenças socialmente determinadas, afetam em geral as fatias mais vulneráveis da população e também estão diretamente relacionadas a problemas estruturais, a exemplo do saneamento.

Como explica Draurio Barreira, médico sanitarista e infectologista que ocupa a Diretoria do Departamento de HIV/AIDS, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis do ministério da Saúde, o Programa Brasil Saudável já se aproxima de tais objetivos menos de um ano após seu lançamento.

“A filariose linfática já foi eliminada e recebemos o certificado de eliminação da OPAS e da OMS no ano passado. Conhecida popularmente como elefantíase, não existe mais no Brasil. São sete doenças no caminho da eliminação. E há cinco infecções que necessariamente não são doenças, são transmitidas de mãe para filho, seja na gestação, seja no parto, seja na amamentação (chagas, hepatite B, HIV, HTLV e sífilis), que queremos eliminar”, contou em entrevista ao Outra Saúde.

De acordo com dados oficiais, foram cerca de 600 mil infecções e 40 mil mortes para o conjunto das Doenças Tropicais Negligenciadas entre 2016 e 2020. São enfermidades evitáveis e cujo controle poderia liberar todo este contingente invisibilizado da população para uma vida melhor, o que também causaria impactos econômicos diretos e indiretos.

Neste sentido, o governo deve lançar ainda hoje, 29/1, um novo programa de transferência de renda para incentivar portadores de tais doenças a seguirem o tratamento prescrito pelo SUS. Para isso, Draurio destaca que há estudos suficientes para corroborar a validade de tal investimento do Estado.

“É uma ideia simples. A malária, a sífilis, as geo-helmintíases, a esquistossomose são algumas doenças que se tratam com injeções de uma, duas ou três doses. A ideia é criar um cartão de adesão que dê um determinado valor para a pessoa quando concluído o tratamento. Para as doenças de tratamento longo, tipo tuberculose ou hanseníase, que leva seis meses, até mais, ou a aids, cujo tratamento é para a vida toda, vamos discutir uma outra proposta”, explicou.

Em termos práticos, atacar as doenças negligenciadas exige ações estrategicamente organizadas para cada território, de acordo com suas características epidemiológicas. Além disso, são ações que devem se coordenar com outras políticas – em especial saneamento, em muitos casos ainda responsável pela sua disseminação. Agora, chegou a hora de agir diretamente nas áreas vulnerabilizadas.

Em sua concepção, o Brasil Saudável destaca a importância da questão ambiental na viabilização de metas, de maneira que o governo deve apresentar nas próximas semanas dois programas complementares, todos eles com vistas a coordenar ações entre mais de uma dezena de pastas do poder executivo.

“O Ministério da Saúde tem pelo menos três programas muito sinérgicos para a eliminação das doenças, especialmente das doenças tropicais, negligenciadas e determinadas socialmente: o Programa Brasil Saudável, O Mais Saúde Amazônia, programa em fase final de elaboração, direcionado à região norte com uma pegada muito mais ligada à questão ambiental e um terceiro, ainda não batizado, que aborda justamente as questões de mudanças climáticas”, revelou.


Confira a entrevista completa com Draurio Barreira.

O que pode contar sobre o andamento do Programa Brasil Saudável, iniciativa lançada pelo governo para controlar doenças negligenciadas, quase um ano após seu lançamento?

São cinco diretrizes. A primeira é o enfrentamento da fome e da pobreza. A segunda é a redução das iniquidades, proteção social e avaliação de direitos humanos, com foco em algumas populações mais vulnerabilizadas. A terceira é a qualificação da comunicação que envolve trabalhadores, movimentos sociais, organizações de sociedade civil, profissionais de saúde, porque não podemos pensar em eliminar doenças se elas não são conhecidas e se não há comunicação com a mensagem focada, precisa, correta. O quarto é o incentivo à ciência, tecnologia e inovação. E o quinto tem a ver com a infraestrutura, saneamento básico, meio ambiente e mudanças climáticas.

Um esclarecimento importante é que não vamos erradicar as doenças. Este era o conceito entre 2000 e 2015, dentro do plano Objetivos do Milênio da ONU. Mas a Agenda 2030 trouxe uma mudança de paradigma: não falamos mais em controle ou erradicação, mas em eliminação. Tem uma diferença fundamental entre erradicação e eliminação, enquanto problema de saúde pública. Na história da humanidade, só uma doença foi erradicada, a varíola. Dentro do Programa Brasil Saudável, que visa atacar 11 doenças, não poderemos erradicar nenhuma. Só uma vacina que tenha 100% de eficácia com cobertura vacinal de 100% da população poderia fazer isso.

Portanto, falamos em eliminação de um problema de saúde pública, uma tarefa que se divide em duas partes. De um lado, são doenças cuja transmissão queremos eliminar. Porque se em qualquer lugar do mundo houver um caso, não se pode falar em erradicação, menos ainda num mundo com as atuais conexões de transporte, comércio, turismo etc. No momento, temos medo de uma epidemia do mpox, que é prevalente na África, ainda que não tenhamos casos e óbitos há dois anos no Brasil.

A meta é fazer com que doenças como chagas, a esquistossomose, a oncocercose, a geo-helmintíases e o tracoma deixem de ser problemas de saúde pública.

Quais os objetivos para este ano? Há possibilidade de se conseguir eliminar algumas das doenças incluídas no plano de ação a curto prazo?

A filariose linfática já foi eliminada e recebemos o certificado de eliminação da OPAS e da OMS no ano passado. Conhecida popularmente como “elefantíase”, não existe mais no Brasil. Queremos eliminar doenças no Brasil até o ano de 2030, em termos de deixarem de ser um problema de saúde pública.

São sete doenças no caminho da eliminação. Já as outras quatro – tuberculose, hepatite, aids e hanseníase – não conesguiremos para eliminar a transmissão. Em relação a tais doenças, que têm alta capilaridade, inclusive no mundo rico, queremos atingir as metas pactuadas com a OMS.

Na tuberculose, a meta é ter menos de 10 casos por 100 mil (hoje são 38). Na aids, é atingir a meta “95, 95, 95”. Ou seja, detectar 95% das pessoas que se estima ter HIV, o que no Brasil é algo como 1 milhão de pessoas (nós detectamos 960 mil); colocar 95% dessas pessoas em tratamento antirretroviral, hoje em torno de 82%, infelizmente, porque há muita gente que não sabe ter a doença e outros que por razões de estigma e preconceitos não se tratam; e, por fim, fazer com que 95% tenham seu quadro viral indetectável. Assim, no dia em que atingir o objetivo “95, 95, 95”, poderemos dizer que a aids está eliminada do Brasil como um problema de saúde pública. Continuaria existindo, mas controlada dentro dessas metas internacionais.

Além dessas 11 doenças, 7 para eliminar a transmissão e 4 para atingir as metas pactuadas, há 5 infecções que não necessariamente são doenças, pois são transmitidas de mãe para filho, seja na gestação, seja no parto, seja na amamentação. Essas infecções são chagas, hepatite B, HIV, HTLV e sífilis. A meta é eliminar sua transmissão vertical, ou seja, de mãe para filho.

E para tal objetivo ser atingido será necessário um trabalho de território?

Sim. Nesse sentido passamos seis ou sete meses em articulação com 14 ministérios, a sociedade civil e principalmente movimentos sociais de pessoas afetadas por essas doenças. Há movimentos fortes formados por pessoas afetadas por aids, tuberculose, hanseníase, chagas e as doenças chamadas negligenciadas, a exemplo de oncocercose, tracoma, filariose… Também trabalhamos em conjunto com a academia, a Fiocruz, organismos internacionais, foi um período de muita articulação e planejamento, com dezenas de mãos, apoio de Banco Mundial e BID.  

Quando terminamos o processo, era final de setembro, época pré-eleitoral, o que nos impediu de ir para os territórios orientar as ações, até porque em muitos casos haveria troca de gestores. Agora, começa o trabalho de campo e vamos fazer a primeira atividade em nível local em Roraima, na capital Boa Vista, na semana de 3 a 7 de fevereiro, onde iremos iniciar ações de combate ao tracoma, uma IST praticamente restrita à região norte e até mais especificamente ao estado de Roraima.

Também iniciaremos um trabalho de campo focalizado em algumas doenças sobre as quais talvez exista um sobredimensionamento a respeito de sua incidência. Há dúvidas se não teríamos já eliminado hepatites B e C. Baseamo-nos no modelo da OMS e dos Estados Unidos, mas é possível que os números sejam superestimados. É o que iremos descobrir ao fazer o trabalho nos territórios, através de estudos de prevalência, para saber qual é o número real de pessoas vivendo com hepatites B e C. Eu não posso garantir que vamos eliminá-la como problema de saúde pública. Mas, a partir de um estudo para conhecer a real prevalência, talvez tenhamos surpresas agradáveis, de estar perto ou já ter eliminado.

A filariose já foi eliminada. Tracoma deve ser neste ano. A transmissão vertical do HIV também já está eliminada, resta o país receber o certificado. A oncocercose deve ser eliminada até o ano que vem. E tem a aids, para a qual nosso projeto é alcançar o “95, 95, 95”.

Além do trabalho no território, tem projetos estratégicos que visam justamente eliminar ou contribuir para isso por meio de alguma coisa específica. Usarei dois exemplos bem rápidos e simples: um é o tracoma. Queremos financiar projetos que acabem com o tracoma nos poucos municípios em que ele ainda existe. É muito provável que consigamos financiar projetos em 10 municípios e o eliminemos definitivamente, um exemplo de projeto estratégico.

O segundo exemplo é a aids. Já atingimos o primeiro e terceiro indicador 95, falta o item de pessoas em tratamento. Estamos fazendo um projeto estratégico de aumentar a adesão e a retenção das pessoas em tratamento. Com isso, a aids seria eliminada como problema de saúde pública. O cenário é bastante positivo.

Fala-se também na criação de um programa de transferência de renda para quem fizer os tratamentos de tais doenças.

Sim, é uma ação entre os ministérios. Já tivemos uma reunião com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e nesta semana faremos uma reunião entre a ministra Nísia Trindade e o ministro Wellington Dias, com as secretarias executivas da Saúde e do Desenvolvimento Social, para criar este mecanismo.

É uma ideia simples. A malária, a sífilis, a geo-helmintíases, a esquistossomose são algumas doenças que se tratam com injeções de uma, duas ou três doses. A ideia é criar um cartão de adesão que pague um determinado valor para a pessoa quando concluído o tratamento. Para as doenças de tratamento longo, tipo tuberculose ou hanseníase, que leva seis meses, até mais, ou a aids, cujo tratamento é para a vida toda, vamos discutir uma outra proposta, com um cartão de prazo mais esticado, talvez um ano, que vise só a adesão ao tratamento.

Com isso, talvez possamos atingir o segundo 95 da aids e dizer que a eliminamos como problema de saúde pública.

Existem estudos e histórico de impactos sociais e econômicos de programas de renda para tratamentos de doenças?

Nós aqui no Ministério, em 2016, publicamos em revistas internacionais um estudo junto com parceiros da Universidade Federal da Bahia e da Universidade de Londres mostrando que beneficiários de Bolsa Família tinham uma taxa de cura 11% maior em relação às pessoas do mesmo nível socioeconômico, raça, cor, idade, que não o recebiam. A cura é muito maior em quem tem assistência social. No dia 5, foram publicados em periódico internacional dois trabalhos mostrando que a incidência da tuberculose caiu 41% entre os beneficiários do Bolsa Família e a mortalidade caiu 31%.

Existe muita evidência científica da importância do suporte social para essas doenças negligenciadas ou de determinação social. E por que eu digo isso? Além das evidências, tais doenças não existem no Hemisfério Norte. Não existem essas doenças em nenhum país rico. São doenças determinadas socialmente mesmo.

Foi publicado pelo Banco Mundial que para cada dólar investido na cura da tuberculose há uma economia de 54 dólares pelo fato de a pessoa não adoecer, não passar 6 meses em tratamento, não onerar o sistema de saúde. A tuberculose é considerada uma doença de custos catastróficos, porque além do tratamento — que no Brasil, felizmente, é de graça — a pessoa se afasta do trabalho, infecta outras pessoas. Enfim, tem um impacto social e econômico muito grande.

A eliminação de tais doenças não está diretamente relacionada a avanços na gestão ambiental das cidades e preservação dos ecossistemas?

Exatamente. Por isso políticas de manejo ambiental são parte das diretrizes deste plano, além do enfrentamento da fome e da pobreza, por isso uma necessidade de alinhar vários ministérios.

Por exemplo, eu acabei de falar do MDS e de um cartão adesão. É um exemplo de transferência de renda e de assistência social. Com o Ministério das Cidades, estamos pactuando que toda pessoa em situação de rua portadora de uma dessas doenças abarcadas pelo Brasil Saudável, especialmente tuberculose, hanseníase, HIV e hepatite, tenha um acesso acelerado ao Minha Casa Minha Vida. Queremos garantir que as pessoas que têm essas doenças tenham acesso à moradia. Não tem como passar meses tratando essas doenças morando na rua. É necessária uma habitação decente.

Já o tracoma e a oncocercose são fruto de água infectada, de falta de saneamento básico. Estamos falando com o Ministério dos Povos Indígenas, a FUNASA e o Ministério de Desenvolvimento e Integração Regional, para garantir água de qualidade e tratamento básico nos territórios indígenas. Para eliminar a esquistossomose, a doença do caramujo, que só dá em água suja. E isso vai ser priorizado pelo Ministério das Cidades em todas as cidades que tenham esquistossomose como problema de saúde pública.

O Ministério da Ciência e Tecnologia, por exemplo, que aparentemente não tem nada a ver com questões sociais, abriu um edital de quase 1 R$ bilhão para pesquisa em doenças negligenciadas. O Ministério da Educação tem um papel fundamental na educação dos profissionais de saúde, com foco nas questões sociais. Portanto, para cada um dos 14 ministérios, há ações específicas que vão contribuir com a eliminação dessas doenças. E é exatamente isso que fizemos ao longo do ano passado na articulação entre os ministérios e agora começou a se consolidar.

Há projeções de doenças tidas como evitáveis se ampliarem em razão da emergência climática?

Sim, daí a necessidade da integração de diferentes programas. O ministério tem pelo menos três programas que são muito sinérgicos na questão da eliminação das doenças, especialmente das doenças tropicais, negligenciadas e determinadas socialmente: o Programa Brasil Saudável, O Mais Saúde Amazônia, programa em fase final de elaboração, direcionado à região norte com uma pegada muito mais ligada à questão ambiental e um terceiro, ainda não batizado, que aborda justamente as questões de mudanças climáticas.

Por exemplo, a questão das inundações do Rio Grande do Sul, que fazem crescer todas as doenças de transmissão hídrica, inclusive essas priorizadas pelo Brasil Saudável. As mudanças climáticas determinam o agravamento de algumas dessas doenças. Tratar uma doença crônica como aids ou tuberculose é extremamente prejudicado quando se tem um alagamento, como foi no Sul, que exige toda uma reconstrução de infraestrutura. Assim como na seca, na região norte, os rios secos impedem as pessoas de chegar a uma unidade de saúde.

São infinitos exemplos de doenças que são agravadas ou ressurgem por questões climáticas. E isso é um foco, especialmente na questão da infraestrutura e do saneamento básico. É um programa realmente muito holístico, que abarca desde a questão da fome, da pobreza, da proteção social, até a ciência e tecnologia e questões elementares como infraestrutura e saneamento básico.

A

A

OUTRAS PALAVRAS

Portal Membro desde 13/12/2024

Segmento: Notícias

Premiações: 

 





A

A


    

Piso da enfermagem: possível equiparação salarial entre auxiliares e técnicos causa pouco impacto financeiro, defende Cofen

Marquezan Araújo

Em meio aos debates sobre a reivindicação dos auxiliares de enfermagem pela equiparação salarial com os técnicos da categoria, o Conselho Federal de Enfermagem considera que, a depender do caso específico, igualar as remunerações seria justo e não elevaria os custos de forma expressiva.

Em meio aos debates sobre a reivindicação dos auxiliares de enfermagem pela equiparação salarial com os técnicos da categoria, o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) considera que, a depender do caso específico, igualar as remunerações seria justo e não elevaria os custos de forma expressiva. 

Ao Brasil 61, o vice presidente da entidade, Daniel Menezes, explicou que, pelo que prevê a legislação, auxiliar e técnico de enfermagem desempenham atividades distintas, porém, na prática, alguns desses profissionais contam com registros para atuar das duas formas. Diante disso, esse grupo é contratado como auxiliar, mas lhes são atribuídas tarefas específicas para técnicos.  

“O que ocorre é que, muitos dos auxiliares de enfermagem têm a formação de técnico de enfermagem e, nesse sentido, nós entendemos que, nesses casos específicos, a equiparação salarial até faz sentido, como forma de reconhecer a execução das atividades de técnico para aquele que é devidamente formado e habilitado para essa categoria, e que as instituições de saúde repassam a esses tarefas mais complexas, que são aquelas que estão previstas na lei do exercício profissional”, destaca. 

Piso da enfermagem: estados e municípios recebem mais de R$ 675 milhões, em janeiro

Segundo Menezes, nos últimos anos, houve uma redução significativa na quantidade de auxiliares de enfermagem, por conta da formação que eles têm feito para técnico. Com isso, ele entende que, atualmente, a maioria dos profissionais são técnicos de enfermagem, o que não acarretaria num aumento significativo de despesas caso a equiparação seja efetivada. 

“Apenas uma parcela pequena mantém o registro e atua como auxiliar de enfermagem, especialmente aqueles que ingressaram no serviço público por meio de concurso público, através do cargo de auxiliar de enfermagem”, pontua. 

Ainda de acordo com o vice-presidente do Conselho, enquanto os auxiliares de enfermagem representam 470 mil inscrições, as de técnico são praticamente 1,9 milhão. Desses, a grande maioria tem duplo registro que atendem às duas categorias. 

Na avaliação do especialista em orçamento público Cesar Lima, a equiparação terá, de fato, um impacto fiscal nas contas públicas, uma vez que pode representar mais aplicação de recursos públicos para fazer a compensação financeira que garante o pagamento do piso dessas categorias. Outro impacto, segundo ele, poderia ser causado na empregabilidade dos auxiliares na rede privada.

“Do lado privado, acho que pode ser um erro dos auxiliares, porque quando um hospital vir que, para ele, tanto faz contratar um técnico quanto um auxiliar, claro que ele vai preferir ficar com o técnico em detrimento dos auxiliares. E do lado público, com certeza terão que ser feitos ajustes orçamentários para arcar com esses novos custos”, considera.  

A

A

BRASIL 61

Portal Membro desde 03/09/2021

Segmento: Notícias

Premiações: 

 




A

A

Gripe aviária: o preço a pagar pela inação dos EUA

Para epidemiologista, modelo predatório da agropecuária e descaso de governo e empresas estadunidenses, mais efeitos das mudanças climáticas, estão por trás do fracasso do país em controlar a H5N1 – que, de lá, ameaça todo o mundo…

    A morte de um homem nos Estados Unidos por gripe aviária, anunciada pelas autoridades sanitárias locais no último dia 6/1, vem sendo entendida como marco de um novo momento para a epidemia da doença. Trata-se do primeiro óbito ligado ao subtipo H5N1 do vírus, o mais associado ao atual surto, no país que se tornou o epicentro dos novos casos. Em pronunciamento, a Organização Mundial da Saúde Animal (OMSA) avaliou que “a situação ressaltou a importância de que o risco seja enfrentado” e que se impeça o vírus de “circular entre aves, porcos, vacas e animais silvestres”, pois é “aí que uma mutação do vírus pode ocorrer e potencialmente criar uma pandemia”.

Entrevistada por Outra Saúde, a epidemiologista Ligia Kerr, que é professora titular da UFC (Universidade Federal do Ceará) e ex-vice-presidente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), explica que não é possível estimar quando essa temida mutação poderia acontecer. No entanto, ela destaca que o fracasso das autoridades sanitárias estadunidenses em interromper – ou pelo menos mitigar – a circulação do agente patogênico aumenta a probabilidade de que ele ganhe a capacidade de passar de humano para humano. Dado esse salto, o número de casos e óbitos tenderia a aumentar vertiginosamente.

Paralisia dos EUA piorou a situação

É nesse sentido mais abrangente que a epidemiologista – reconhecida por sua contribuição à resposta do Brasil a uma série de doenças transmissíveis, como hanseníase, HIV/aids, zika e, mais recentemente, a covid-19 – aponta os fatores que levaram os Estados Unidos a se tornar, neste momento, um país com um número discrepante de casos da doença.

Os EUA estão tendo muita dificuldade de fazer o controle das questões do clima, principalmente porque não fazem nenhum esforço real”, ela alerta. No mais populoso país da América, que possui um forte setor agropecuário, o vírus “pulou” muitas vezes das aves silvestres para as aves de criação. Dados disponibilizados no último dia 6/1 pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) em um painel interativo sobre a situação da H5N1 nas Américas revelam a extensão do problema: dos 67 casos em humanos desde 1º de janeiro de 2024 no continente, 66 foram nos EUA; dos 1.300 surtos entre animais, cerca de 1.100 também foram naquele país.

Circulando praticamente sem controle nos EUA, o agente patogênico sofreu numerosas mutações. Em março de 2024, como explica um estudo no New England Journal of Medicine, foi identificado o primeiro caso de transmissão da H5N1 de uma vaca para um humano. Na sequência, cresceu entre os especialistas o temor do surgimento de uma nova variante, capaz de transmitir o vírus de pessoa para pessoa. “Não dá para dizer exatamente quando vai ocorrer essa mutação, porque não é assim que elas funcionam, mas vale notar que o vírus agora está sendo transmitido a partir de mamíferos, que são animais mais próximos de nós. Ou seja, a chance está aumentando”, esclarece Ligia Kerr.

O homem recentemente falecido no estado de Louisiana estava infectado com um vírus do clado associado à infecção de aves, e não mamíferos. Ele contraiu a doença após ser exposto a uma criação de galinhas em que havia animais infectados, disseram as autoridades locais. O fato aponta para o segundo fator fundamental, além das mudanças climáticas, a agravar a crise da H5N1 nos Estados Unidos: a hegemonia de um modelo econômico predatório na pecuária.

A maneira como se está produzindo carne e outros produtos derivados de galinhas e vacas é um problema. Se concentra um número gigantesco de animais em condições sujas, estressantes, com pouco espaço. Eles ficam muito mais vulneráveis a essas doenças e, por consequência, nós também ficamos”, aponta a epidemiologista.

Como o Brasil encara o problema

No Brasil, esclarece Ligia, os casos da gripe aviária nos últimos anos se restringiram basicamente a aves silvestres e a atuação das autoridades tem sido eficaz – pequenos surtos em criações de subsistência foram rapidamente identificados e contidos com o apoio do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), por exemplo. Em outubro, foi renovado o estado de “emergência zoosanitária” em todo o território nacional para manter a vigilância contra o vírus. No ano passado, o Ministério da Saúde (MS) publicou um Plano de Contingência do Setor Saúde para Influenza Aviária e um Guia de vigilância da influenza aviária em humanos.

Complexo, o cenário também envolve uma questão de classe. A maior parte dos casos humanos de H5N1 notificados pelos EUA envolvem trabalhadores que têm contato com animais em seu dia a dia – como aqueles que são funcionários de granjas e fazendas de gado. O fato é de particular interesse para nosso país, em que a criação e o abate de animais tem importante peso econômico e numerosa mão de obra.

Além do papel do Mapa, o MS já vem preparando ações e equipes para a vigilância e situações de emergência. Mas penso que deve haver ainda mais integração, envolvendo também o Ministério do Trabalho”, adiciona a epidemiologista, referindo-se ao risco maior que correm os funcionários de estabelecimentos que manipulam animais vivos e mortos no seu dia a dia. Não são poucos os brasileiros que trabalham em granjas, fazendas de criação de gado, açougues e abatedouros – e é comum que suas condições de trabalho estejam bem aquém do que seria digno.

Além disso, está em gestação no país uma vacina contra a gripe aviária. Em agosto do ano passado, o Instituto Butantan submeteu à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) uma solicitação para dar início às pesquisas clínicas do imunizante. “O Butantan incluiu vacinas com a cepa H5N1 nos ensaios pré-clínicos, por também se tratar de uma variante altamente patogênica, permitindo uma mudança de cepa caso essa variante se espalhe”, diz comunicado da instituição à época. Uma nota de dezembro da Agência Gov indica que o estudo está na fase 2, e que a vacina poderá ser “fornecida ao SUS no futuro”.


Contudo, frisa Lígia, é preciso ter em mente que não haverá solução sem uma intervenção mais sistêmica: “É claro que você tem que ter vacina e ações de emergência para impedir que o vírus se alastre, já que ele está chegando mais perto da transmissão entre humanos. Mas também é preciso destacar que, sem ações mais estruturais para enfrentar a crise climática, haverá novas situações assim”.

A despeito da situação estável no Brasil, ela reforça que as ações de vigilância epidemiológica não bastam. Mudanças estruturais no setor agropecuário são a melhor chance para impedir que o enorme surto da H5N1 nos EUA se desdobre em um evento pandêmico. Além disso, medidas ambientais e climáticas de fundo são essenciais para evitar a disseminação global de outros vírus altamente patogênicos, que possam gerar novas pandemias.

Grande parte dos eventos pandêmicos e epidêmicos recentes, inclusive a covid-19, têm ligação com a destruição do habitat de animais silvestres. Nós temos que parar de tratar a natureza desse jeito. Não tem por onde escapar, se não mudarmos, vamos ter outras epidemias e pandemias”, conclui a epidemiologista.


A

A

OUTRAS PALAVRAS

Portal Membro desde 13/12/2024

Segmento: Notícias

Premiações: 

 




A

A

    

Poluição: o problema da falta de monitoramento

Estima-se que 8 milhões de pessoas morrem por ano por má qualidade do ar. Mas faltam informações mais detalhadas sobre o risco ambiental em um terço dos países, em especial os mais pobres. Guerras também aumentam poluição e impedem monitoramento

Por Stefan Anderson, no Health Policy Watch | Tradução: Gabriel Brito

Mais de um terço dos países no mundo não realiza monitoramento governamental da qualidade do ar e deixa quase um bilhão de pessoas sem informações sobre um dos maiores riscos à saúde, revelou um novo relatório nesta sexta-feira, 13/12.

A avaliação da OpenAQ, uma organização sem fins lucrativos que mantém o maior banco de dados de medições de qualidade do ar de código aberto, identificou lacunas significativas no rastreamento e compartilhamento de dados sobre qualidade do ar pelos governos, especialmente em países de baixa e média renda. O relatório bienal é a única avaliação global sobre se e como os governos nacionais produzem e compartilham dados de qualidade do ar com o público.

36% dos países não possuem monitoramento governamental da qualidade do ar, e 90% das pessoas em nações sem programas de monitoramento vivem em países de baixa e média-baixa renda, onde, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), altos níveis de poluição e taxas de doenças tornam as populações especialmente vulneráveis. Além disso, 9% dos países coletam dados governamentais sobre qualidade do ar, mas não os compartilham publicamente e ampliam ainda mais a lacuna no acesso público a esse dado crítico.

A poluição do ar é uma das principais causas de morte e incapacidade nos países mais populosos sem monitoramento, como a República Democrática do Congo, Tanzânia, Afeganistão e Irã. O progresso na ampliação do monitoramento permanece lento, com apenas um aumento de 3% no número de países que realizam monitoramento nacional ou subnacional desde 2022.

“Para oferecer ar limpo para todos, os governos precisam não apenas rastrear a qualidade do ar, mas também oferecer um conjunto de dados acessíveis e de qualidade”, disse a Dra. Colleen Rosales, Diretora de Parcerias Estratégicas da OpenAQ. “Bilhões de pessoas não sabem o que estão respirando e mereciam uma maior transparência de dados.”

Riscos da poluição do ar

A poluição do ar, principalmente de emissões de combustíveis fósseis, mata mais de oito milhões de pessoas anualmente e custa mais de 8 trilhões de dólares em todo o mundo. É tida como o maior risco ambiental à saúde. Seu impacto na expectativa de vida é equivalente ao do tabagismo e supera os do uso de álcool, acidentes de trânsito e HIV/aids.

A exposição a poluentes no ar afeta a saúde desde o nascimento, causando doenças respiratórias, problemas cardiovasculares e questões de desenvolvimento. Bebês, crianças pequenas e comunidades de baixa renda enfrentam os maiores riscos. Dados da OMS mostram que 99% das pessoas no mundo respiram ar insalubre todos os dias.

Benefícios de dados transparentes

Embora ONGs, instituições acadêmicas e empresas privadas monitorem a qualidade do ar, os dados governamentais oferecem um valor mais preciso, por meio de medições contínuas e abrangentes. Diferentemente de estudos limitados no tempo, o monitoramento governamental rastreia uma ampla gama de poluentes, auxiliando na conformidade regulatória, em pesquisas de saúde e na previsão da qualidade do ar.


Apenas 55% dos governos compartilham dados sobre qualidade do ar publicamente, e apenas 27% o fazem de forma totalmente transparente e acessível, segundo o relatório. A lista de países sob graves crises de poluição que continuam a faltar com transparência incluem China, Rússia, Índia, Paquistão e outras sete nações com populações de pelo menos 70 milhões de pessoas.

“Embora muitos países populosos tenham compartilhado parcialmente seus dados de qualidade do ar, um aumento na transparência poderia beneficiar mais de 4,5 bilhões de pessoas”, destaca o relatório.

Os Índices de Qualidade do Ar (IQA) variam muito entre os países, o que leva a mensagens inconsistentes ao público sobre os riscos dos níveis de poluição.

Desafios para o monitoramento

Quase um bilhão de pessoas vive em países sem monitoramento da qualidade do ar, mas a inação governamental nem sempre é a causa. Muitos países, especialmente de baixa e média renda, carecem de financiamento e expertise técnica para implementar sistemas de monitoramento.

Além disso, guerras e conflitos civis interromperam esforços de monitoramento. Por exemplo, sistemas de monitoramento desmoronaram na Ucrânia e na Palestina devido às guerras em curso, enquanto conflitos civis no Sudão impedem qualquer progresso na infraestrutura de vigilância do ar.

Pesquisas indicam que a poluição do ar em zonas de guerra pode causar mais mortes do que bombas. Na Ucrânia, o uso de armas aumentou significativamente os níveis de poluentes prejudiciais, como material particulado de até 2,5 mícrons (PM2.5) e dióxido de nitrogênio (NO2), em cidades próximas aos combates, impactando severamente a saúde pública.

A

A

OUTRAS PALAVRAS

Portal Membro desde 13/12/2024

Segmento: Notícias

Premiações: 

 




A

A

EUA e OMS: impasse na saúde global

Trump notifica que pretende sair da agência. Para especialistas, efeito pode ser de “perde-perde” – e comprometeria ações decisivas em todo o mundo, inclusive na saúde mental. Busca coletiva da solução é indispensável

    

Por Claudia Braga, em sua coluna para Outra Saúde

Desde os resultados da última eleição presidencial dos Estados Unidos, experts têm refletido sobre os possíveis impactos de uma eventual saída do país da Organização Mundial da Saúde (OMS). Nesta segunda-feira (20/1), com o anúncio de uma ordem executiva de Donald Trump que estabelece que “os Estados Unidos pretendem deixar a OMS”, esse debate ganhou destaque na mídia.

Quais são as implicações disso para os EUA, para a OMS e para o mundo? Esse é um debate em aberto, e analistas têm apresentado diferentes perspectivas. Um ponto crucial a destacar é que o verbo “pretender”, usado na ordem executiva — e também em uma nota pública da agência das Nações Unidas, emitida em resposta — é chave aqui: uma eventual saída não pode ser imediata.

Para muitos, a saída dos Estados Unidos seria uma situação de perde-perde: perdem os EUA, perde a OMS – e, com isso, perde o mundo e as pessoas. Por um lado, a OMS poderia enfrentar impactos financeiros significativos, pois os EUA são um dos maiores contribuintes, tanto em contribuições obrigatórias quanto voluntárias – estas últimas representando o maior desafio. Também seriam comprometidos esforços globais pela saúde que vão desde segurança sanitária até o acesso a serviços básicos em nações que dependem quase exclusivamente da OMS.

Mas os EUA também têm a perder. Deixar a OMS significa significaria abrir mão de ser parte de redes globais de vigilância em saúde. Agências como os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), que colaboram com a OMS em pesquisas e emergências, perderiam acesso a dados globais com que a agência das Nações Unidas trabalha e que são cruciais para orientar decisões nacionais de saúde pública. O mesmo impacto recairia sobre a Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA), que também mantém parcerias estreitas com a OMS. Além disso, há os Centros Colaboradores que, ao colaborarem com a OMS, se beneficiam dessa relação – caberia manter centros em um país que não é membro da organização?

Publicada no dia seguinte ao anúncio da medida de Trump, a nota da OMS “lamenta o anúncio de que os Estados Unidos da América pretendem se retirar da Organização”. A agência relembrou que “os Estados Unidos foram um membro fundador da OMS em 1948 e têm participado da formação e governança do trabalho da OMS desde então, ao lado de outros 193 Estados-membros, inclusive por meio de sua participação ativa na Assembleia Mundial da Saúde e no Conselho Executivo”, assinalando que “as instituições americanas contribuíram e se beneficiaram da filiação à OMS”.

Destacando os problemas que a decisão pode acarretar para os EUA, o jornal The New York Times, por exemplo, publicou que a “saída da OMS prejudicaria a posição da nação como líder global em saúde e tornaria mais difícil combater a próxima pandemia”. De fato, participar da agência significa integrar esforços globais para ampliar o acesso à saúde para todos. Além disso, a presença na organização permite aos países influenciar debates globais, participar de respostas conjuntas e beneficiar-se de trocas estratégicas, como acesso a informações de primeira linha e pesquisas científicas avançadas essenciais para a saúde pública. Em resumo, estar na OMS traz ganhos globais e nacionais diretos.

Já considerando os problemas que a decisão pode representar para o mundo, vale lembrar que a decisão sobre pretensão de saída da OMS foi anunciada junto de um pacote de ordens executivas, incluindo uma que estabelece uma pausa na assistência ao desenvolvimento de outros países por 90 dias  – o que, na prática, pode levar à interrupção de tratamentos em saúde por todo o mundo. No Quênia, por exemplo, cerca de 1,3 milhão de pessoas que vivem com HIV têm acesso a tratamento adequado por meio de programas sustentados pelo fundo global de saúde e por agências da ONU.

Para completar, debate-se que a retirada da OMS teria potencial impacto sobre a liderança global dos EUA em saúde, que poderia ser enfraquecida.

Por isso tudo, há quem argumente que a ordem executiva é negociável e revogável. E há espaço real para isso. Retomando o texto da ordem, ela afirma que os “os Estados Unidos pretendem se retirar da OMS”. Por que o verbo “pretender”?


Conforme a legislação dos EUA, a saída de um tratado internacional exige que o país informe sua intenção com um ano de antecedência e quite suas obrigações financeiras com a organização no atual ano fiscal – pagamentos geralmente realizados em janeiro. Isso implica que a ordem executiva é, na prática, um aviso inicial.

Em entrevista à DW, Lawrence Gostin, professor de legislação em saúde global e diretor do WHO Collaborating Center on Public Health Law and Human Rights na Universidade de Georgetown, argumentou que o presidente Trump é conhecido como um “negociador” e poderia usar essa medida como ferramenta para pressionar por mudanças na OMS – apesar de a organização já ter implementado reformas importantes nos últimos sete anos.

Outro argumento recorrente é que Donald  Trump poderia usar essa situação como moeda de troca em negociações internas no Congresso americano, como a aprovação de reformas em troca da revogação da ordem executiva.

E o que pode mudar na saúde mental global?

Os impactos para a OMS da saída dos EUA seriam abrangentes, em especial para a saúde mental. É parte do trabalho da OMS fortalecer os sistemas de saúde mental, saúde cerebral e uso de substâncias em todo o mundo.

Ao menos desde 2001, com o marco da publicação do Relatório Mundial da Saúde intitulado “Saúde mental: nova concepção, nova esperança”, a OMS tem atuado para que a saúde mental seja reconhecida como um direito de todos, assinalando que o caminho dos sistemas de saúde mental é de substituição de hospitais psiquiátricos por serviços de saúde mental de base comunitária. 

Nos últimos 25 anos, a organização desempenhou um papel central na transformação do paradigma de atenção em saúde mental, oferecendo apoio técnico e institucional aos países para implementar mudanças necessárias e promover o desenvolvimento de sistemas e políticas de saúde mental alinhado aos direitos humanos, incluindo orientação para revogação de leis violadoras de direitos e criação de leis garantidoras de direitos. Na América do Sul, enquanto exemplo de países que transformaram seus sistemas de saúde mental com apoio direto da OMS, estão o Chile e o Peru; se considerarmos as recentes Iniciativas Especiais de Saúde Mental em curso, somam-se a eles a Argentina e o Paraguai.

Nos últimos dez anos, a saúde mental global recebeu reforços significativos, especialmente a partir da Resolução nº 32/18, liderada por Brasil e Portugal e adotada no Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2016. A resolução reconhece que “todas as pessoas têm direito à vida, à liberdade, à segurança pessoal, a viver de forma independente e a ser incluídas na comunidade” e também que “ninguém deve ser submetido a torturas, penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes”.

A partir desse diagnóstico, os Estados membros e outras agências da ONU foram convocados a integrar plenamente uma perspectiva de direitos humanos nos serviços de saúde mental e comunitários.

Olhando da perspectiva da história da reforma psiquiátrica brasileira, que tem seu início no final dos anos 1970 enquanto movimento social crítico, chama atenção que apenas em 2016 foi aprovada uma resolução de grande peso afirmando os direitos das pessoas com problemas de saúde mental e necessidade de cuidado em liberdade. O Brasil, de fato, é uma liderança e referência mundial para a transformação do modelo de atenção em saúde mental.

Ocorre que, mesmo com os esforços da OMS dos últimos 25 anos da OMS, muitos países ainda baseiam suas políticas de saúde mental em hospitais psiquiátricos. A partir de 2016, com o impulso gerado pela resolução e com base na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, tornou-se imperativo para os países transformar suas políticas de saúde mental, o que significa, na prática, promover liberdade e direitos para as pessoas. O trabalho da OMS para que isso ocorra é fundamental.

Caso a OMS sofra impactos significativos em sua capacidade de atuação, todos os seus programas – incluindo aqueles relacionados à saúde mental – provavelmente serão afetados, em maior ou menor grau. Isso retardaria as mudanças necessárias, o que impacta diretamente na vida de pessoas que poderiam ser cuidadas em liberdade e, talvez, não serão.

O que é a OMS

Para refletir em profundidade sobre esse tema, também vale conhecer mais sobre o que é a OMS – até porque a alegação central da ordem executiva para retirada dos EUA baseia-se na condução política e o financiamento da OMS.

Uma das principais agências da Organização das Nações Unidas (ONU), ela foi fundada em 1948 e é responsável pela coordenação de ações e respostas em saúde global, com o objetivo geral de assegurar o mais alto nível de saúde para todas as pessoas do mundo. Esse papel envolve diversas frentes de trabalho: fomentar políticas de saúde com vistas a garantir a saúde universal, coordenar respostas em emergências de saúde, apoiar a assistência em saúde nos países, erradicar doenças transmissíveis, desenvolver estratégias para enfrentar doenças crônicas, e promover pesquisas de relevância global, entre outras iniciativas.

A história da OMS inclui inúmeras conquistas importantes, desde a promoção da garantia de saúde para todos até a erradicação de doenças, como a varíola.  A pandemia de covid-19 tornou conhecido o papel da agência na coordenação de respostas às emergências, merecendo destaque o Fundo para Resposta Solidária e o programa COVAX: ação da OMS para garantir acesso justo e equitativo às vacinas deveria ser motivo suficiente para reconhecer a importância da organização.

Como a OMS é conduzida

A OMS é, essencialmente, governada pela Assembleia Mundial da Saúde, composta por 194 países membros, incluindo os EUA — um número impressionante, considerando que a ONU reconhece 195 países no mundo. A Assembleia Mundial da Saúde, o mais alto órgão político de saúde global, realiza reuniões anuais nas quais são deliberados o programa de trabalho e o orçamento da organização. Além disso, a cada cinco anos, é eleito o Diretor-Geral da OMS.

O ponto fundamental aqui é: a política da organização e seu programa orçamentário são resultado de negociações e deliberações conjuntas de todos os delegados que representam os países membros. na Assembleia Mundial da Saúde que os desafios globais em saúde são debatidos, e as formas de enfrentá-los são definidas, estabelecendo a agenda política, os objetivos de saúde e as estratégias que orientarão a OMS em sua missão de promover a saúde pública e alcançar o mais alto nível de saúde para todos. É também nesse fórum que se monitora o progresso dos programas aprovados e em andamento. Ou seja, a condução política da organização está intrinsecamente vinculada aos seus Estados membros.

O mesmo se aplica ao orçamento. Nesse espaço de deliberação conjunta, os Estados membros aprovam o plano orçamentário que sustenta as operações da OMS.

E como a OMS é financiada? A OMS conta com duas principais fontes de financiamento:

  1. Contribuições obrigatórias anuais dos Estados membros: chamadas de “contribuições avaliadas”, correspondem a menos de 20% do orçamento da organização.
  2. Contribuições voluntárias: realizadas por Estados membros, organizações internacionais, entidades filantrópicas e outras partes, essas contribuições representam mais de 80% do orçamento total da OMS

A definição das contribuições obrigatórias de cada Estado membro da OMS baseia-se no Produto Interno Bruto (PIB) de cada país. Essas contribuições, calculadas como uma porcentagem do PIB, seguem uma escala de avaliação (por isso o nome “contribuições avaliadas”), que é previamente acordada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e aprovada na Assembleia Mundial da Saúde. 

E como é definida qual é a contribuição obrigatória de cada Estado Membro da OMS? Com base no Produto Interno Bruto (PIB) de cada país. As contribuições obrigatórias são uma porcentagem do PIB do país e tem como base uma escala de avaliação (por isso o nome “contribuições avaliadas”), sendo a porcentagem acordada pela Assembleia Geral das Nações Unidas e aprovada na Assembleia Mundial de Saúde. 

Na prática, isso significa que países com maior PIB pagam contribuições mais altas, enquanto países com menor PIB pagam valores proporcionais à sua capacidade econômica. Essas contribuições são realizadas anualmente, sempre no mês de janeiro.

O que fazer?

É desejável para o mundo uma possível negociação sobre a situação. A nota apresentada pela OMS é acertada ao se encerrar afirmando: “esperamos que os Estados Unidos reconsiderem e estamos ansiosos para nos engajar em um diálogo construtivo para manter a parceria entre os EUA e a OMS, para o benefício da saúde e bem-estar de milhões de pessoas ao redor do mundo.” 

Ministros de Saúde de outros países, como o da Alemanha, e grupos de advocacy já estão mobilizados para tentar reverter essa decisão em esforços diplomáticos.

Esse é um esforço que vale a pena. Muito se discute – com razão – sobre o impacto financeiro que uma saída dos EUA causaria na OMS. Mas não é apenas por isso que empreender esforços para reverter essa decisão vale a pena. Os sistemas de saúde do mundo são mais fortes com colaboração global e com compartilhamento de informações e dados. Para garantir sistemas de saúde mais fortes e o direito à saúde para todos vale usar todo argumento possível, vale promover toda boa negociação e vale todo diálogo eficaz porque essa decisão impacta pessoas e vidas  – e pessoas e vidas têm valor. 

Vale a pena porque tem valor todo esforço para construir um mundo em que as pessoas não morram de doenças preveníveis e com tratamentos acessíveis em razão de iniquidade social; porque tem valor todo esforço para  que todas as pessoas em todos os países tenham acesso a vacinas, programas e serviços de saúde de qualidade; porque tem valor o cuidado em saúde mental em liberdade; porque tem valor todo esforço para que as pessoas simplesmente vivam melhor, e isso envolve todas as pessoas. 

São necessários esforços coletivos e ampliados para afirmar o multilateralismo e cooperações internacionais. É preciso uma ampla defesa da ciência e da democratização da informação. É preciso fortalecer as instituições e pactuações coletivas que priorizem e defendam o bem comum.

Para encerrar, falamos sempre, no Brasil, da necessidade de defender o SUS. Mesmo sendo evidente a sua importância para promoção e garantia do direito à saúde e seu papel civilizatório, precisamos cotidianamente e com unhas e dentes defender o SUS porque, entre outras tantas disputas, está em jogo uma disputa de valores sociais.

No cenário da saúde global não é diferente. É preciso empreender todos os esforços para defender o mais alto nível de saúde de todas as pessoas do mundo, sem distinções, porque os princípios da equidade, universalidade e direitos humanos são valores pelos quais vale a pena continuar lutando.

A

A

OUTRAS PALAVRAS

Portal Membro desde 13/12/2024

Segmento: Notícias

Premiações: 

 




A

A

Desprezada por Trump, África volta-se ao Oriente

Além de deixar OMS, presidente dos EUA interrompe assistência humanitária e de saúde no continente. Países buscam alternativas para enfrentar doenças como HIV, mpox e marburg. China, Coreia do Sul e Japão mostram-se possíveis aliados 

Por Kerry Cullinan, no Health Policy Watch | Tradução: Gabriela Leite

Países africanos não terão “outra opção” a não ser buscar outras fontes de apoio para seus programas de saúde pública caso os Estados Unidos reduzam seu apoio. Coreia do Sul, China e Japão já ofereceram ajuda durante surtos recentes de doenças.

Essa foi a declaração feita por Ngashi Ngongo, alto funcionário dos Centros Africanos de Controle e Prevenção de Doenças (África CDC), durante uma coletiva de imprensa na quinta-feira. Em seu primeiro dia no cargo, na segunda-feira (20/1), o presidente dos EUA, Donald Trump, retirou o país da Organização Mundial da Saúde (OMS) e congelou toda a ajuda externa por 90 dias para “reavaliar e realinhar” o suporte oferecido.

Além disso, há pressão de conservadores para que Trump corte o financiamento e reforme o Plano de Emergência do Presidente dos EUA para o Alívio da Aids [Pepfar, na sigla em inglês. Programa do governo estadunidense criado em 2003 para financiar e apoiar iniciativas de prevenção, tratamento e controle do HIV/aids em países de baixa e média renda, com foco principal na África].

“Algumas decisões tomadas pelo presidente Trump sobre a OMS e o Pepfar são de grande importância para a África… dado o peso do governo dos EUA no financiamento da saúde pública na região”, afirmou Ngongo, assessor principal do diretor-geral do África CDC. “Eles são um dos principais financiadores da saúde pública na África. O Pepfar financia programas de HIV em muitos países que dependem amplamente dos recursos norte-americanos”.

A OMS oferece assistência técnica a países africanos para “melhorar a execução de programas de saúde”, e a retirada de recursos dos EUA será um “golpe” para o continente, acrescentou. A OMS perderá pouco menos de 20% de seu financiamento com o corte de verbas americanas.

Embora os EUA sejam obrigados a notificar sua saída da OMS com um ano de antecedência, a ordem executiva de Trump orienta os funcionários a “tomarem medidas apropriadas, com a maior velocidade possível”, para “suspender a transferência futura” de “fundos, apoio ou recursos” do governo americano à OMS.

Encontro sobre financiamento da saúde em Ruanda

Em 14 de fevereiro, o presidente de Ruanda, Paul Kagame, sediará uma reunião com líderes africanos sobre financiamento da Saúde, onde serão discutidas fontes alternativas de financiamento, acrescentou Ngongo.

Aumentar os gastos domésticos para garantir “financiamento mais sustentável e previsível para a saúde pública”, criar um fundo africano para epidemias e identificar novas fontes de apoio são algumas das opções para preencher o vazio deixado pela saída dos EUA, disse ele.

“Recebemos apoio de muitos países – da Coreia do Sul, da China, do Japão. Muitos se prontificaram a fornecer financiamento, seja em dinheiro ou equipamentos”, acrescentou. “Estamos explorando oportunidades para ampliar a mobilização de recursos desses outros países que realmente estão dispostos a ajudar”.


Trump justificou o congelamento de 90 dias dizendo que a “indústria e burocracia de ajuda externa não estão alinhadas com os interesses estadunidenses e, em muitos casos, são antitéticas aos nossos valores”. Além disso, ele argumentou que essas ações “desestabilizam a paz mundial ao promover ideias em países estrangeiros que são diretamente contrárias às relações harmoniosas e estáveis dentro e entre as nações”.

O novo governo dos EUA provavelmente usará os 90 dias para pressionar países em temas como aborto, direitos LGBTQIA+ e apoio à Palestina.

Surto de mpox

Enquanto isso, o mpox continua a se espalhar no continente, com 5.842 novos casos relatados na última semana. A República Democrática do Congo (RDC) permanece como epicentro do surto, mas ele está se expandindo em Uganda, que relatou quatro mortes nas últimas duas semanas.

O surto em Uganda, inicialmente disseminado por motoristas de caminhão, agora atinge a população em geral, segundo o epidemiologista do África CDC, Dr. Merawi Aragani. Kampala, a capital, é o epicentro, com pouco mais de 1.000 casos. Cerca de 400 mil pessoas já foram vacinadas contra o mpox. A República Centro-Africana iniciou sua campanha de vacinação neste ano.

Tanzânia confirma segundo caso de marburg

Na Tanzânia, nove das dez pessoas suspeitas de infecção pelo vírus marburg morreram. Apenas duas dessas mortes foram confirmadas como causadas pelo vírus. Outros 29 casos suspeitos testaram negativo, mas Ngongo afirmou que o África CDC não tem motivos para questionar a precisão dos testes realizados no país. “Os testes estão sendo feitos no laboratório nacional de saúde pública em Dar es Salaam, que é o mais avançado do país”, disse Ngongo.

“Nós confiamos nos resultados. Como sabem, a Tanzânia é um dos países que o África CDC apoiou significativamente no desenvolvimento de capacidade, melhorias na infraestrutura, fornecimento de equipamentos e distribuição de máquinas de sequenciamento. A capacidade é bastante alta no país, e tendemos a acreditar na confiabilidade dos resultados”.

O África CDC mobilizou a mesma equipe de especialistas que lidou com o surto de marburg em Ruanda para ajudar na resposta da Tanzânia. Isso inclui “epidemiologistas que apoiarão o pilar de vigilância” e especialistas de laboratório “que estão auxiliando com laboratórios móveis”.

A

A

OUTRAS PALAVRAS

Portal Membro desde 13/12/2024

Segmento: Notícias

Premiações: 

 




A

A

    


O HIV, entre o Comércio e a Saúde

No Brasil, são mais de 40 mil novos casos por ano. Por regras arbitrárias de “mercado” e decisões políticas equivocadas, país não tem acesso a medicamentos mais baratos. É hora de tomar um novo caminho, de compromisso real com o SUS e os brasileiros

Por Susana van der Ploeg, para a coluna Saúde não é mercadoria

O mais recente Boletim Epidemiológico de HIV/AIDS, divulgado em 11 de dezembro de 2024, revela que em 2023, o Brasil registrou 46.495 novos casos de HIV, o que representa um aumento de 4,5% em relação a 2022. A maior concentração de casos ocorre entre jovens de 15 a 24 anos (23,2%), adultos de 25 a 34 anos (34,9%) e homens que fazem sexo com homens (HSH) (53,6%). Além disso, a epidemia afeta de maneira desproporcional a população negra, que corresponde a 63,2% dos casos (49,7% pardos e 13,5% pretos). Entre os 10.338 óbitos registrados em 2023, 63% foram de pessoas negras, sendo 48% pardos e 15% pretos. As mulheres negras, particularmente vulneráveis, representaram 63,3% das mortes femininas e 67,4% da taxa de infecção em gestantes. Esses números refletem desigualdades sociais profundas e estruturais que persistem no Brasil e que comprimidos diários, por si só, não resolvem.

O HIV/AIDS permanece um grave problema de saúde pública, marcado por desigualdades estruturais da sociedade brasileira que agravam o acesso a cuidados adequados. Nesse sentido, iniciativas como o Comitê Interministerial para a Eliminação da Tuberculose e de Outras Doenças Determinadas Socialmente (CIEDDS) e o Programa Brasil Saudável – Unir para Cuidar são fundamentais para integrar políticas públicas que enfrentem as raízes das iniquidades sociais, ao mesmo tempo que fortaleçam os princípios fundamentais do SUS: a equidade, integralidade e universalidade. Outra política pública fundamental é a estratégia nacional do Complexo Econômico Industrial da Saúde, que tem como objetivo primordial fortalecer o SUS e ampliar o acesso universal à saúde mediante o desenvolvimento de tecnologias e a produção local de insumos, medicamentos, vacinas, biotecnológicos e dispositivos médicos.

Entretanto, tais políticas públicas tendem a falhar ao ignorar mecanismos como a OMC, o Acordo TRIPS e as patentes, que perpetuam a dependência tecnológica dos países periféricos. Reduzir a vulnerabilidade e a dependência do SUS exige um enfoque específico nos monopólios farmacêuticos que fortalecem apenas as grandes farmacêuticas transnacionais.

Além disso, os gestores da saúde não podem se apoiar em discursos que confiem na “boa vontade da indústria farmacêutica para considerar os limites do SUS”. Para defender e promover o SUS é necessário que os gestores da saúde adotem uma postura firme frente aos interesses do mercado, que lucra às custas da nossa população. A voluntariedade dessa indústria é incompatível com as necessidades do povo brasileiro, vejamos os casos das licenças voluntárias.

licença voluntária é um acordo entre o titular de uma patente e terceiros, permitindo a produção e comercialização de um medicamento mediante condições específicas definidas em contrato. Esse acordo pode incluir restrições territoriais, controle sobre a venda e fornecimento de insumos farmacêuticos ativos (IFAs), além de condições sobre preços e demanda. Quando ocorre em escala global, envolve múltiplos produtores e países, permitindo que diferentes fabricantes produzam e distribuam o medicamento simultaneamente em regiões específicas. O caráter “voluntário” dessas licenças decorre do fato de que sua concessão depende exclusivamente da decisão e do interesse do detentor da patente.

O Brasil e seu povo têm sido sistematicamente excluídos das licenças voluntárias em escala global, como ocorreu com os medicamentos cabotegravir (GSK/ViiV) e lenacapavir (Gilead), injeções bimestrais e semestrais que se mostraram mais eficazes na profilaxia pré-exposição (PrEP) ao HIV do que as opções atualmente disponíveis no SUS. Essas exclusões, que restringem o acesso a versões genéricas mais acessíveis, são profundamente preocupantes, especialmente à luz da expressiva contribuição brasileira nos ensaios clínicos conduzidos no país e no âmbito do SUS. Tal prática não apenas reforça desigualdades, mas também fere princípios éticos fundamentais ao negar às comunidades os benefícios diretos dos estudos nos quais participaram.

Os critérios para a exclusão do Brasil são baseados nas classificações de renda per capita do Banco Mundial, que classificam o Brasil como um país de renda média alta, em vez de considerar a incidência epidemiológica. Em 2023, segundo o Banco Mundial, o Brasil com 203 milhões de pessoas, tem um PIB per capita real de US$ 9.032. Essa classificação é completamente distorcida e desconectada da realidade social do país. Esse número, embora represente a média, esconde a imensa desigualdade e a desigual distribuição de riqueza no Brasil. A renda média não reflete a dura realidade das populações mais vulneráveis, que enfrentam sérias dificuldades de acesso a serviços básicos de saúde, educação e alimentação. As licenças voluntárias são alinhadas a esse critério falso e injusto, que perpetua barreiras ao acesso universal à saúde, agravando ainda mais as desigualdades existentes.

As licenças voluntárias são uma estratégia de mercado, excludente e discriminatória. Que sob o disfarce de um “plano de acesso”, reforçam o controle monopolista sobre os medicamentos e restringe o acesso universal. Com uma lógica colonialista e discriminatória, que exclui a maior parte das populações da América Latina, desconsiderando uma região onde as taxas de novas infecções estão aumentando. Isso por si só evidencia que não podemos depender dessa indústria para garantir um compromisso real com a saúde global.

Se a “boa vontade” não se manifesta no cenário global, o que podemos esperar no Brasil? Vejamos o caso da licença voluntária entre a gigante farmacêutica GlaxoSmithKline/ViiV e o laboratório público Farmanguinhos-Fiocruz para a transferência de tecnologia do dolutegravir. Contrato de transferência de tecnologia que só existe porque o Brasil concedeu patente para este fármaco, que se não anulada pelo judiciário, vigorará até 2026.


A licença voluntária formalizada sob uma “Aliança Estratégica” não representa um bom negócio para o SUS. Atualmente, cerca de 600 mil pessoas no Brasil dependem do dolutegravir, e, apesar da crescente demanda de mais de 40 mil pessoas por ano, o Ministério da Saúde o adquire por um preço exorbitante, cerca de 20 vezes maior que o genérico disponível no mercado internacional. A patente do dolutegravir é a principal barreira à entrada de concorrentes genéricos, mantendo os preços elevados. Esse contrato de transferência de tecnologia carece de transparência e não explica por que o Brasil paga anualmente 800 milhões de reais a mais por esse medicamento.

Além do custo elevado, o medicamento continua sendo integralmente importado da GlaxoSmithKline (GSK), com etapas de produção realizadas no Reino Unido, Espanha e Polônia. O contrato foi firmado em 2020, mas, até o momento, não houve avanços concretos para a fabricação local, perpetuando a dependência do Brasil de fornecedores internacionais. Esse cenário é um claro desvio da finalidade pública, pois os laboratórios públicos, como o Farmanguinhos-Fiocruz, deveriam atender às necessidades de saúde da população e promover a produção nacional de medicamentos essenciais. Em vez disso, estão sendo utilizados para atender ao interesse de grandes empresas farmacêuticas, resultando em uma subordinação aos interesses do mercado, em detrimento da saúde pública e da soberania nacional.

A lógica de mercado da indústria farmacêutica tem um impacto direto na vida das pessoas e não pode ser a principal força orientadora para atender às necessidades de saúde da população. O alto preço do dolutegravir é um exemplo claro de como o lucro das grandes farmacêuticas prevalece sobre o direito à saúde. Um único medicamento, com preço elevado e monopolizado por uma única empresa, sobrecarrega de forma desproporcional o orçamento do SUS e ameaça a sustentabilidade do acesso universal. Isso compromete a capacidade do sistema de saúde de oferecer tratamentos e de incorporar inovações seja para o HIV/AIDS como para outras doenças e condições, afetando diretamente aqueles que também dependem do SUS. Para garantir o acesso contínuo a tratamentos necessários e fundamentais, é imprescindível adotar medidas legais, como as licenças compulsórias, que assegurem como prioridade o bem-estar da população e não os interesses financeiros das grandes farmacêuticas.

Não podemos esperar pela “boa vontade” do mercado, o Papai Noel não chega para todas as crianças e em todas as casas. Mas podemos reafirmar a solidariedade, a importância da luta coletiva, da coalização entre sociedade civil e governo para com coragem, ousadia e alegria desafiar os interesses corporativos e priorizar a saúde pública. Por isso é sempre importante relembrar o discurso de Lula em 2007 na assinatura do decreto de licença compulsória do efavirenz: “O Brasil não pode ser tratado como se fosse um país que não pudesse ser respeitado. (…) Se não tiver com os preços justos, não apenas para nós, mas para todo ser humano no planeta que está infectado, temos que tomar essa decisão. Afinal de contas, entre o nosso comércio e a nossa saúde, vamos cuidar da nossa saúde”.

O ano de 2025 está à porta, trazendo a oportunidade de reconstruirmos caminhos. O Brasil pode e deve fazer melhor. Saúde a todo o povo brasileiro em 2025!


A

A

OUTRAS PALAVRAS

Portal Membro desde 13/12/2024

Segmento: Notícias

Premiações: 

 



A

A

  


  

Por que são os jovens que adoecem?

Dossiê da Fiocruz revela: mito de “vigor” e “potência empreendedora” da juventude oculta uma epidemia de doenças físicas e psíquicas. Causa essencial: trabalho exaustivo e rebaixado, que bloqueia o desfrute da vida. Agora, o VAT dá às vítimas a chance de lutar

Rick Azevedo, vereador recém-eleito no Rio e um dos líderes nacionais do Vida Além do Trabalho (VAT) sempre acentua como sua saúde foi afetada pela escala de trabalho 6×1. Arrola as consequências do sofrimento mental e emocional que atingem os trabalhadores submetidos anos a fio a ela, como esgotamento, depressão e burnout, o que também ecoa nas respostas de seus seguidores e nos cartazes de mobilização do movimento.

Um relato publicado em seu Instagram sobre uma panfletagem realizada em setembro de 20241 dá uma pista de como se processa a identificação e adesão de trabalhadores vivendo a mesma situação (ou, como assinala Rick, a mesma dor):


Renan, um cara tímido, trabalhador de supermercado na madrugada por anos, saiu do seu trabalho de manhã e foi diretamente nos encontrar. A gente não se conhecia, mas a nossa dor automaticamente se ligou uma à outra no mesmo momento. Ele estava tão cansado, cheio de sono… eu falei: ‘meu amigo, vai pra casa, não é justo você perder seu descanso’. E ele disse: ‘não Rick, essa luta é uma dor nossa e eu quero ajudar.”

Esse impacto do trabalho intensivo sobre a saúde dos jovens já vem se anunciando também em outros espaços de escuta. Em uma pesquisa do Conselho Nacional de Juventude sobre as percepções dos jovens na pandemia da Covid19, descortinou-se a sobrecarga e a exaustão dos jovens diante da sobreposição de diferentes tarefas e responsabilidades assumidas por eles, incluindo as do trabalho: mais de metade dos 68 mil respondentes disseram que se sentem sobrecarregados e exaustos (sobretudo as jovens mulheres, entre as quais cerca de 2/3 manifestam tais queixas), além de altas parcelas dos que disseram passar por situações de ansiedade, insônia, depressão e pensamento suicida2.

Os materiais de comunicação do VAT expressam situações como cansaço e esgotamento, ansiedade e frustração, estresse, irritabilidade e perda de apetite, provocadas pela escala exaustiva. As queixas apresentadas reforçam o entendimento de que o trabalho é um determinante social da saúde. Ou seja, as condições em que ele é exercido impactam na saúde mental e física dos trabalhadores.

Constata-se que a contundência da manifestação do movimento conflita diretamente com a representação comum que circula na sociedade de que, por estarem em sua plena capacidade vital, os jovens têm energia suficiente para ser dispendida com a intensidade e a velocidade exigidas pelas determinações de produtividade do mercado. Além de atender a essa exigência, devem assumir múltiplas funções. A flexibilidade, a disposição e a potência juvenil são aspectos romantizados que ocultam a realidade de que parcela significativa dos jovens atuam nos piores empregos, inclusive os assalariados, com jornadas exaustivas e em condições insalubres, sujeitos a acidentes e com salários rebaixados, sem uma política ativa de proteção, de fiscalização e de trabalho decente, comprometendo a sua condição de saúde.

Com a atenção voltada para esse tema, a Agenda Jovem da Fiocruz, em parceria com a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, preparou um estudo que resultou na construção de um Dossiê sobre a Saúde dos Jovens Trabalhadores. Neste documento,3 podemos encontrar a revelação de que os jovens são o segmento etário mais afetado pelos agravos na saúde provocadas pelo trabalho. Cerca de um terço de todos os acidentes de trabalho registrados no SUS entre 2016 e 2022 atingiram jovens. Dos acidentes de trânsito ocorridos com pessoas entre 25 e 29 anos, notoriamente uma das principais causas de mortalidade e lesões incapacitantes nessa faixa etária, 43% estão relacionados com o trabalho exercido pelas vítimas. Metade dos jovens ocupados encontram pelo menos um elemento nocivo à saúde em seu ambiente de trabalho.

As queixas do VAT sobre esgotamento e frustração corroboram os dados sobre os transtornos mentais4 relacionados ao trabalho notificados no Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN). No período de 2016 a 2022, foram notificados 10.350 casos de transtornos mentais relacionados ao trabalho, sendo 1.908 em pessoas na faixa etária dos 15 aos 29 anos (18,43% do total das notificações). Mais de metade (53,4%) das notificações foi de pessoas registradas com carteira assinada. Os jovens trabalhadores de serviços administrativos compõem o grupo com as maiores notificações e, na sequência, os jovens trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e mercados.

Esses dados nos dão uma pista para entender por que e como o tema da saúde mental tornou-se em poucos anos crucial para pessoas jovens. Ao lado dos sempre alegados problemas de isolamento e de desengajamento como fonte de sofrimento emocional, encontramos problemas de exaustão, assédios, tensões produzidas pelas exigências de desempenho, que resultam também em agravamentos da saúde mental.

Essas informações, estratificadas para a faixa de 15 a 29 anos retiradas dos Sistemas de Informação em Saúde, são ilustrativas e indicativas do tamanho do problema, que deve ser ainda maior, pois uma constatação importante do dossiê é a subnotificação de casos ocorridos e não registrados. Um exemplo é o fato de que, no Sistema de Informação Hospitalar (SIH), em 99,99% dos casos de internação de jovens, a informação sobre sua ocupação não foi preenchida, o que nos impede de compreender o quanto tais internações podem ser relacionadas a sua condição de trabalhadores. A falta de registros adequados dificulta a correta avaliação dos impactos das jornadas e condições de trabalho dos jovens sobre sua saúde física e mental, e é preciso encontrar caminhos para superar essa deficiência nos mecanismos da importante base de dados do sistema de saúde.


Os jovens adoecem, mas não param: a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), de 2019, nos dá a informação de que apenas 4,9 % dos jovens adultos (18 a 29 anos) interrompem atividades em função de problemas de saúde, bem menos do que acontece com as pessoas das demais faixas etárias (8,1% na população total). E poucos obtêm cuidados: apenas 10,8% dos jovens fazem reabilitação em caso de diagnóstico elegível. Pode-se concluir pela existência de diferentes tipos de obstáculos de acesso aos serviços de saúde: 25% dos jovens que responderam à pesquisa afirmaram ter dificuldades em conseguir atendimento médico no serviço de saúde; a faixa etária de 18 a 29 anos é a que menos consulta médicos.

A realidade da condição juvenil no mundo do trabalho parece não encontrar resposta em redes de cuidado integral, de assistência, proteção e promoção da saúde. A despeito da existência do Estatuto da Juventude, sancionado em 2013 e que trata dos direitos da população jovem entre 15 e 29 anos, a orientação para políticas de saúde no Brasil relativas à população jovem utiliza os parâmetros internacionais da Organização Mundial da Saúde (OMS) e se concentra na categoria adolescente5. Em decorrência, há insuficiente apreensão das necessidades em saúde dos segmentos jovens maiores de 18 anos, que já estão inseridos no trabalho.

O último documento oficial de caráter nacional orientador para a saúde da população jovem foi publicado em 2010 (Diretrizes Nacionais de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens) e não trata da dimensão do trabalho como constitutiva da realidade juvenil. Quando cita explicitamente a faixa etária dos jovens para além dos adolescentes é pelo viés da produtividade, perspectiva comum a toda a produção dos organismos multilaterais naquele período, preocupados em aproveitar a existência de um bônus demográfico para impulsionar o crescimento do país, “utilizando como força motriz a maior população de jovens da sua história”, como ecoa ainda hoje o documento que pretende reunir os diagnósticos e proposições “atualizadas” sobre os jovens do Brasil (Atlas das Juventudes, 2022 p. 10).

É a mesma perspectiva que, tomando os jovens como um dos “principais ativos” da sociedade, propõe uma agenda de “programas eficientes e eficazes de capacitação para o mercado de trabalho, com ênfase na produtividade futura dos trabalhadores” e com “políticas complementares relativas a empreendedorismo tanto em aspectos de capacitação quanto de financiamento”, como afirma documento do Banco Mundial de 20186. O documento também afirma que é preciso avançar nas “reformas” que diminuam a regulação do mercado de trabalho, “introduzindo ajustes referenciados a mudanças na produtividade dos trabalhadores, maior flexibilidade e um salário-mínimo legal mais baixo para os jovens.”

Tais diretrizes acabaram se impondo como referências principais de muitos atores do atual campo das políticas públicas de juventude e estão reproduzidas em diferentes planos de políticas governamentais desde o golpe de 2016, como fica mais explicito no Plano Nacional de Empreendedorismo e Start Up lançado pela Secretaria Nacional de Juventude em 2017, assim como em vários programas oferecidos por institutos e fundações empresariais para serem desenvolvidos através de parcerias público-privadas com governos estaduais e municipais

Em julho de 2024, abriu-se uma consulta pública para uma Política Nacional de Atenção Integral à Saúde de Adolescentes e Jovens. A minuta do documento avança ao incorporar a população até 29 anos com base no Estatuto da Juventude. Contudo, trata do trabalho na vida dos jovens pelo viés clássico da juventude como uma mera fase de transição, trazendo referências ao “projeto de vida”, reforçando uma sequência idealizada onde os jovens se deslocariam da conclusão de sua escolaridade básica para o mundo do trabalho. Não se constitui como foco de atenção a situação de saúde dos jovens que já trabalham, dos agravos ocorridos a partir da ocupação e quais as estratégias de promoção, vigilância, proteção, atenção e recuperação à saúde devem ser acionadas. É uma expectativa se algo mais profundo e conectado à realidade em relação à saúde de jovens trabalhadores estará incluído na publicação do texto final da política.

Cabe recordar que a possibilidade de conciliação das jornadas dos jovens nas diferentes dimensões da vida, de modo que uma não anule a outra, é um dos eixos estruturantes da Agenda do Trabalho Decente para Juventude, elaborada e lançada no segundo governo Lula, e desenvolvida durante o governo Dilma na forma de um Plano Nacional, interrompido pelo golpe de 2016. Nesse sentido, assim como existe a necessidade de que o setor da saúde compreenda a diversidade etária no interior da juventude, inclua em seus diagnósticos a identificação das necessidades de saúde dos jovens de todas as idades e encontre os jovens trabalhadores, também é fundamental retomar uma agenda de trabalho decente, de maneira a responder aos anseios da juventude trabalhadora, que o VAT conseguiu expressar de maneira tão cristalina.

A notável repercussão e mobilização alcançada por esse movimento demonstra que esses jovens souberam dar voz a uma queixa amplamente sentida, materializando uma demanda geral por uma outra relação com o trabalho, outras condições de exercício e outro equilíbrio do tempo do trabalho na vida. Como se surpreende o próprio Rick Azevedo: “Jamais imaginei que minha dor, meu sofrimento, de 12 anos na escala 6X1 iria se transformar em uma luta necessária e urgente que vai beneficiar toda a classe trabalhadora no país.”

Não é possível prever os desdobramentos desses acontecimentos, mas já é possível afirmar que novos personagens entraram em cena e que a pauta dos direitos do trabalho se recolocou no centro da disputa a partir dessa luta. Se a posição e perspectiva dos seus protagonistas prevalecer, o debate não poderá girar em torno dos custos para os empregadores ou do comprometimento da produtividade da economia. O que está em jogo, o que ecoa do grito lançado por eles, é o prejuízo desse modelo de trabalho sobre a vida e a saúde dos trabalhadores.

É o momento de reafirmar uma agenda de direitos com um eixo que possa pôr em relevo a necessidade de cuidar dos jovens na sua condição de trabalhadores, e de sua saúde, física e mental, em vez de apenas exortá-los como os responsáveis pelo aumento da produtividade e de crescimento econômico do país. Uma agenda que afirme a possibilidade de que todos possam “trabalhar para viver, e não viver para trabalhar”.

A

A

OUTRAS PALAVRAS

Portal Membro desde 13/12/2024

Segmento: Notícias

Premiações: 

 






O perigo de Trump para a saúde dos EUA

Além de ter escolhido secretário antivacinas, o futuro presidente planeja desfinanciar o Obamacare, abrir ainda mais espaço para as empresas e dificultar o acesso ao aborto. Órgãos internacionais podem perder apoio – e extermínio de palestinos seguirá…

Por Candice Choo-Kang, no People’s Health Dispatch | Tradução: Gabriela Leite

A eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos em 2024 tem levantado muitas preocupações – e a questão da saúde é uma das principais. Profissionais de saúde temem o impacto de uma segunda presidência de Trump no acesso aos cuidados de saúde e na saúde das populações marginalizadas. Entre os temores estão a liderança das agências governamentais de saúde, o acesso aos seguros, as restrições à saúde reprodutiva e aos cuidados de afirmação de gênero.

Uma das maiores preocupações é a figura de Robert F. Kennedy Jr. e o papel que desempenhará na política de saúde pública em sua busca para “Tornar a América Saudável Novamente”. Foi noticiado inicialmente que Kennedy estava recomendando nomeações para o cargo de secretário de Saúde e Serviços Humanos (HHS) e comissário de Alimentos e Medicamentos. Em 14 de novembro, Trump anunciou que Kennedy Jr. será, ele mesmo, o secretário do HHS.

Ele é conhecido por seu discurso agressivo contra a vacinação e por promover informações falsas ligando vacinas ao autismo. O futuro secretário tem recomendado que o flúor, um mineral natural que previne a cárie dentária, seja removido do fornecimento de água potável dos Estados Unidos, pois acredita que se trata de uma neurotoxina associada a “artrite, fraturas ósseas, câncer ósseo, perda de QI, distúrbios neurodesenvolvimentais e doenças da tireoide”.

No entanto, além das preocupações com a má liderança, ativistas da saúde estão preocupados com o modo como as mudanças estruturais propostas podem limitar ainda mais o já desigual sistema de saúde do país.

O que esperar dos seguros de saúde e da dívida médica?

Durante a campanha presidencial de Trump para seu primeiro mandato, ele havia prometido revogar a Lei de Cuidados Acessíveis (ACA, na sigla em inglês, também conhecida como Obamacare), mas não teve sucesso. Durante a campanha de 2024, o futuro presidente enfatizou que não revogaria, mas tornaria a ACA “muito, muito melhor e com muito menos dinheiro”.

Independentemente da administração, no entanto, os Estados Unidos simultaneamente ocupam a posição de um dos países mais ricos do mundo e de um dos que apresentam os piores indicadores de saúde, em comparação com outros países – particularmente no hemisfério norte. Esse não é um fenômeno novo: tem sido uma característica do país por décadas. Virtualmente todos os outros países do Norte Global oferecem cobertura de saúde mais abrangente a um custo mais baixo.

Entre as fraquezas do sistema de saúde dos Estados Unidos estão os altos custos com despesas diretas dos pacientes e a ineficiência devido à sua complexidade única e extrema. Com base no Censo dos Estados Unidos de 2021, 20 milhões de pessoas têm algum tipo de dívida médica, somando mais de 220 bilhões de dólares. O sistema dos EUA valoriza o lucro mais do que a saúde – verdadeira razão para a inacessibilidade dos cuidados de saúde no país. Ainda assim, o vice-presidente eleito JD Vance prometeu que a administração aumentaria a “competição nos mercados de saúde”, um termo usado para mascarar a sanha por lucro da indústria de saúde.

Justiça reprodutiva e de gênero


Possivelmente, um dos legados mais duradouros do primeiro mandato de Trump foi sua influência sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos. Os juízes da Suprema Corte têm nomeações vitalícias, e Trump nomeou 3 dos 9 assentos para Neil Gorsuch, Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett durante seu primeiro mandato. Isso levou a uma maioria conservadora na corte, que gerou muitas consequências – incluindo a revogação de Roe v. Wade em 2022. Essa mudança encerrou a proteção federal ao aborto e causou a sua criminalização em alguns estados.

Durante a primeira presidência de Trump, sua administração restringiu muitas clínicas que recebiam fundos federais do Título X de fornecer encaminhamentos e informações sobre abortos. Trump afirmou que não usaria legislações como o Comstock Act para proibir o aborto medicamentoso (por exemplo, mifepristona), mas o acesso a tais medicamentos continua vulnerável. Por outro lado, embora a administração Biden tenha afirmado apoiar o direito ao aborto, não tomou medidas substanciais para proteger o acesso (por exemplo, descriminalização, financiamento de abortos em terras/edifícios federais). Todos esses ataques tiveram efeitos devastadores, incluindo um aumento de 7% na mortalidade infantil nos Estados Unidos.

O primeiro mandato de Trump também gerou novos ataques à saúde LGBT+ e aos cuidados de afirmação de gênero. Na Ordem Executiva 13.798, intitulada “Promovendo a Liberdade de Expressão e a Liberdade Religiosa”, Trump permitiu que os profissionais de saúde negassem atendimento a pessoas LGBT+ com base em “objeções baseadas na consciência”. A administração Biden reverteu algumas dessas políticas, com efeito a partir de março de 2024. No entanto, sob a administração Biden, as leis estaduais têm permitido que esse tipo de cuidado seja atacado de forma agressiva – como visto em Ohio, onde as leis que proíbem o cuidado de afirmação de gênero para menores foram mantidas.

A saúde dos imigrantes e a saúde global

Em 2023, os imigrantes representavam mais de 14% da população dos Estados Unidos, totalizando mais de 47 milhões de pessoas. Após o fim da política de fechamento das fronteiras de Trump (Título 42), a administração Biden provocou um enorme influxo de migrantes a entrar nos Estados Unidos. Recursos, incluindo cuidados de saúde, não foram fornecidos adequadamente pelos governos federal, estadual ou municipal para aqueles que chegavam. Ambas as administrações desencorajaram as pessoas, particularmente aquelas vindo da América Central, a entrar nos Estados Unidos, ignorando o papel direto do país na desestabilização de países do Sul Global e, assim, forçando a migração.

Além disso, no que diz respeito à saúde global, Trump havia restaurado a Política da Cidade do México, que impede que os fundos dos EUA apoiem organizações que promovem ou fornecem aborto. Trump também retirou os Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde (OMS), uma decisão revertida pelo governo Biden.

Ambas as administrações foram fervorosas defensoras da guerra e são responsáveis pela morte de centenas de milhares, como exemplificado pelo atual genocídio do povo palestino. Israel tem atacado hospitais e trabalhadores da saúde, e destruiu o sistema de saúde de Gaza. Trump, um defensor de Israel, não se oporia a esses crimes de guerra e provavelmente apoiaria a anexação e o reinado de terror na Cisjordânia também.

Trump parece determinado a usar seu segundo mandato para causar grandes retrocessos no já desigual sistema de saúde privatizado dos Estados Unidos. Enquanto milhões lutam para acessar os cuidados e o apoio de que precisam, as políticas de Trump irão aprofundar ainda mais essas desigualdades.

Fonte Portal Membro Outras Palavras


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

RURAL

MÍDIAS

POLÍTICA