POLÍTICA
A A | Brasil: Outro ciclo de polarização?Lula saiu das cordas. Mas, com a prisão domiciliar de Bolsonaro, pode haver uma reaproximação entre a ultradireita e o centrão – e agenda conturbada no Congresso. Para avançar em seus projetos, governo precisará navegar com cuidado e ousadia Nas últimas semanas, como argumentamos em outra oportunidade, houve uma mudança significativa na conjuntura. O presidente Lula e seu governo conseguiram reagir bem a algumas derrotas na Câmara, especialmente à derrota do IOF. A estratégia de se dirigir diretamente à população foi exitosa e levou à recuperação parcial da aprovação do presidente, segundo alguns institutos de pesquisa. Em seguida, com o aumento das tarifas impostas pelos Estados Unidos sobre as exportações brasileiras, gerou-se um campo político mais amplo em torno do presidente Lula. Esse novo contexto produziu um isolamento relativo do bolsonarismo, do PL e dos governadores de Minas e de São Paulo. Com isso, seria possível esperar o início de uma agenda despolarizante que beneficiaria o governo Lula. A semana passada apresentou um enredo diferente. A prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro o fez voltar ao centro da conjuntura. As atitudes desastradas de Eduardo Bolsonaro haviam impelido, tanto o ex-presidente, como o governador de São Paulo, para uma condição desconfortável no tabuleiro político. O bloqueio da mesa da Câmara, que impediu que o presidente da casa Hugo Motta abrisse os trabalhos legislativos, sugere uma reunificação entre o centrão e a extrema direita. Caso essa reaproximação progrida, ela poderá comprometer a aprovação de temas fundamentais da agenda do governo no Congresso. Assim, voltamos a uma conjuntura polarizada, cujos principais elementos merecem ser analisados. A decretação da prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes provocou uma mudança substancial na conjuntura política. Há evidências de que Bolsonaro agiu no sentido de provocar o ministro do STF, o que o obrigou a decretar a prisão domiciliar. Alguns desdobramentos desse fato já estão visíveis. Em primeiro lugar, o motivo da prisão causou controvérsia, sendo criticada até mesmo por alguns comprometidos com a defesa da democracia no Brasil. Em segundo lugar, é importante observar que a justificativa da prisão do ex-presidente Bolsonaro seria mais consistente se se desse pela tentativa de golpe de Estado. De todas as maneiras, o desrespeito que o ex-presidente demonstrou em relação às medidas cautelares impostas pelo ministro do STF acabou forçando a sua prisão. A decisão do ministro Alexandre de Moraes interfere nas relações entre governo e Congresso que se seguirão ao longo do segundo semestre deste ano. As circunstâncias que levaram Hugo Motta à presidência da Câmara dos Deputados indicavam que ele teria uma limitada liderança sobre a Casa. Sua ascensão se deu através da costura de uma ampla e diversa coalizão, onde a agenda de compromissos parecia se moldar ao gosto dos interlocutores. Os interesses contraditórios de seus apoiadores foram se explicitando ao longo do primeiro semestre, produzindo a sensação de que nenhum dos polos estaria confortável com a sua gestão. Coube à extrema direita evidenciar essa limitação às vésperas da abertura dos trabalhos legislativos do segundo semestre de 2025. No dia 5 de agosto de 2025, a bancada do PL, com apoio do Partido Novo, passou a bloquear a abertura dos trabalhos por parte do presidente da Casa. Somente na madrugada de quarta-feira, o acordo entre líderes de cinco partidos, capitaneado pelo ex-presidente da Câmara Arthur Lira, permitiu a abertura dos trabalhos legislativos. A agressividade das manifestações e o desfecho mediado por Arthur Lira comprometeram a liderança de Motta no Congresso. Esta condição insere um risco para o governo: a limitação do presidente da Câmara de garantir o encaminhamento de um conjunto de agendas de interesse do governo, neste decisivo semestre. No segundo semestre deste ano, a principal agenda que a oposição tentará levar a cabo será: a antecipada anistia aos vândalos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023, o impeachment do ministro do STF Alexandre de Moraes e a alteração das regras do fórum privilegiado. A mudança no fórum privilegiado conta com apoio substantivo nas casas legislativas porque interfere diretamente no andamento dos processos que correm no STF sobre o mau uso das emendas parlamentares. Ele está vinculado a outros temas que são motivos de tensão entre os poderes Legislativo e Judiciário, como a exigência da autorização das direções das casas legislativas, tanto para entrada da Polícia Federal em suas dependências, como para prisão de parlamentares. Neste segundo semestre, é de se esperar uma conjuntura extremamente volátil, com possibilidades de crises agudas. Ela exigirá do governo competência para navegar tendo em vista a implementação da sua agenda legislativa — que facilitará a implementação de sua agenda de políticas públicas — a ampliação e consolidação de suas bases parlamentar e social. O sucesso nessa empreitada tenderá a aumentar a competitividade do presidente Lula para as disputas eleitorais de 2026. | A A |
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A A | Tarifaço de Trump: veja o que prevê decreto que regulamenta reciprocidade econômicaJosé Alexandre de SouzaDecreto também criou comitê interministerial para deliberar sobre a aplicação de contramedidas provisórias; em primeira reunião do colegiado, setor da Indústria defendeu negociação com EUA antes de recorrer à possíveis retaliações O presidente Luiz Inácio Lula da Silva regulamentou, nesta terça-feira (15), a Lei da Reciprocidade Econômica. O decreto cria instrumentos para que o Brasil possa reagir formalmente a medidas unilaterais de países ou blocos econômicos que prejudiquem sua competitividade. A publicação do decreto no Diário Oficial da União ocorre em meio à crise provocada pela decisão dos Estados Unidos de aplicar uma tarifa de 50% sobre todos os produtos importados do Brasil. O que prevê o decreto da reciprocidade econômica?Segundo o ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), a nova regulamentação autoriza o governo a suspender concessões comerciais, investimentos e obrigações relativas a propriedade intelectual como forma de contrapartida a medidas "unilaterais" adotadas por países ou blocos econômicos que impactem a competitividade internacional brasileira. O decreto também criou o Comitê Interministerial de Negociação e Contramedidas Econômicas e Comerciais. O comitê ficará responsável por deliberar sobre contramedidas a serem adotadas — tanto as provisórias e emergenciais quanto as ordinárias, com tramitação mais longa. Contramedidas: provisórias e ordináriasAs contramedidas provisórias têm caráter excepcional e poderão ser aplicadas de forma mais célere, mediante aprovação do Comitê. Já as ordinárias exigirão consulta pública e análise pelo Comitê-Executivo de Gestão da Camex (Gecex), com decisão final a cargo do Conselho Estratégico da Camex. Em todos os casos, o Ministério das Relações Exteriores será responsável por conduzir as notificações diplomáticas e acompanhar o processo de negociação com o país ou bloco envolvido. Indústria defende diálogo e pede prazo para negociarApesar da regulamentação abrir caminho para possíveis medidas de retaliação, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) reforçou a importância de "esgotar" o diálogo com os Estados Unidos antes de qualquer resposta comercial. “Antes (de retaliar), é preciso esgotar toda e qualquer possibilidade de negociação”, defendeu o presidente da CNI, Ricardo Alban, após encontro com presidentes das federações da indústria, ocorrido na segunda-feira (14). Na primeira reunião do Comitê Interministerial, nesta terça-feira, o setor pediu ao governo brasileiro que discuta junto ao norte-americano um adiamento de 90 dias no início da vigência da tarifa. O objetivo é de abrir espaço para acordos bilaterais e negociações setoriais. Alban participou do encontro, junto a empresários e representantes de associações industriais. "O setor produtivo, a Indústria e, certamente, o agronegócio estão convergentes na busca da solução, porque o que temos aqui é um verdadeiro 'perde-perde'. Não faz sentido, de forma nenhuma – nem econômica, nem social, nem geopolítica. Então, temos que trabalhar para que a situação seja contornada", explicou o dirigente. “O Brasil não pretende ser reativo, intempestivamente. Nós entendemos, nesta reunião, é que o país não se precipitará em medidas de retaliações, para que elas não sejam interpretadas simplesmente uma disputa. O que nós queremos é o entendimento", complementou. A CNI estima que, se a tarifa de 50% entrar em vigor conforme anunciado, o Brasil pode perder ao menos 110 mil empregos diretos, com impactos relevantes sobre o PIB e a balança comercial. Governo deve priorizar reversão da tarifaO ministro Geraldo Alckmin afirmou que o governo está empenhado em reverter a nova taxação americana, que considera “completamente inadequada”. Segundo o vice-presidente, os EUA mantêm superávit com o Brasil há 15 anos, com uma tarifa média de apenas 2,7% sobre produtos americanos exportados ao Brasil. “De outro lado, dos 10 principais produtos que os Estados Unidos exportam para nós, oito são ex-tarifário ou tarifa zero, não pagam nenhum imposto para entrar no Brasil. E a tarifa média é de 2,7%, a tarifa média de importação”, explicou o ministro. Além de Alckmin, a articulação do governo inclui o Itamaraty e as pastas da Fazenda e da Casa Civil. | A A |
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A A | A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL 1663/23), de autoria do deputado Fausto Santos Jr. (União-AM), que revoga trechos desatualizados da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Durante a aprovação da proposta, foi integrada ao projeto uma emenda que prevê mecanismos para permitir o cancelamento online de contribuição sindical pelos trabalhadores. A matéria será enviada ao Senado Federal.
A emenda foi apresentada pelo deputado Rodrigo Valadares (União-SE) e permite que o trabalhador comunique o cancelamento por e-mail ou por aplicativos de empresas privadas autorizadas para serviço de autenticação digital. O cancelamento também poderá ser feito por meio de portais ou aplicativos oficiais do Governo Federal, como o Gov.br – que mantém conexão apenas com serviços públicos. Conforme a emenda, fica determinado aos sindicatos disponibilizar aos trabalhadores o cancelamento digital do imposto sindical em suas plataformas, com prazo máximo de dez dias úteis para confirmar o pedido a partir do recebimento – sob pena de cancelamento automático. A proposta foi aprovada pelos deputados na forma de um substitutivo do relator, deputado Ossesio Silva (Republicanos-PE). Polêmica: cancelamento digital de contribuição sindicalA aprovação da emenda que prevê o uso de mecanismos digitais para pedir o cancelamento de contribuição sindical gerou polêmica entre os parlamentares. O autor do dispositivo, deputado Rodrigo Valadares (União-SE), destacou que, pela Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017, o pagamento da contribuição sindical é voluntária. Para ele, permitir o cancelamento do pagamento de forma online vai simplificar e modernizar o processo, além de facilitar o exercício desse direito pelos trabalhadores. “A digitalização dos processos administrativos tem se mostrado uma solução eficaz para reduzir a burocracia e aumentar a eficiência das relações entre o cidadão e as instituições”, afirmou Rodrigo Valadares na justificativa da emenda. Rodrigo Valadares argumentou que o processo para cancelar essa autorização de descontos sindicais é difícil, especialmente para trabalhadores que enfrentam barreiras logísticas ou administrativas, bem como longas filas, apenas para cancelar a contribuição nos sindicatos. O deputado justificou, ainda, que o sistema digital permitirá maior acessibilidade, proteção de dados e segurança jurídica, além de promover a agilidade necessária para garantir o cumprimento da legislação. Contrário à emenda, o relator, deputado Ossesio Silva, disse que as alterações interferem na autonomia das entidades sindicais. Para o deputado Helder Salomão (PT-ES), a medida pode enfraquecer as organizações sindicais do país. Em defesa da mudança na legislação, o deputado Mauricio Marcon (Pode-RS), destacou que os trabalhadores não podem ser obrigados a ter esse tipo de desconto na folha de pagamento sem autorização e nem ser submetidos a dificuldades no cancelamento presencial. Revogações de artigos da CLTO projeto também revoga outros pontos relativos à organização sindical, como a criação de sindicatos em distritos e a definição da base territorial da entidade por parte do ministro do Trabalho. Com isso, fica excluída da CLT a necessidade de regulamentação ministerial de requisitos – como duração do mandato da diretoria e reunião de, pelo menos, 1/3 da categoria para o registro sindical, dispositivos previstos em outra lei. A proposta também extingue a necessidade de o ministro do Trabalho autorizar a criação de sindicato nacional. Além disso, o projeto transfere e atualiza atribuições das extintas juntas de conciliação e julgamento, remetendo-as às varas trabalhistas. | A A |
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A A | Por que celebrar a volta do Palácio CapanemaJoia da arquitetura moderna brasileira é reinaugurada neste 20/5. Viagem à época de sua construção mostra como o edifício foi pensado, desde o começo, de forma integrada à arte de renomados escultores. Hoje, cada obra tem vida própria – pela presença, ausência ou remoção A reinauguração do Palácio Capanema, projetado na década de 1930 para abrigar as dependências do Ministério da Educação e Saúde Pública do governo Vargas, vem recebendo ampla cobertura dos veículos de comunicação. Segundo a versão oficial, as obras foram iniciadas em 2019 e recebeu, do atual governo, investimentos do Novo PAC para ser devolvido à população. As informações revelam que o edifício abrigará escritórios do Ministério da Cultura, instituições vinculadas ao IPHAN e dependências que serão abertas ao público, como o terraço, provido de um café panorâmico. No domingo, dia 11 de maio de 2025, um periódico de grande circulação no país publicou, como destaque do jornal, uma coluna sobre a reabertura do Palácio Capanema, prevista para o dia 20 do mesmo mês. Coincidentemente, na mesma página, elogia a manifestação de um conhecido economista, grande parceiro de bancos internacionais, defendendo o congelamento de ganhos reais do salário-mínimo no Brasil por seis anos, para “proteger os mais pobres”. Pelo menos existe coerência entre os textos, sugerindo o retorno do referido jornal às suas origens, quando apoiava a ditadura militar e a demolição de edifícios referenciais da cidade, como o Palácio Monroe, que recebeu, na ocasião, um efusivo editorial comemorando o desaparecimento do “mostrengo arquitetônico” da Cinelândia. Assistiu, insensível, à demolição do Solar de Monjope, à Rua Jardim Botânico, marco da arquitetura neocolonial, em frente ao Parque Lage, ameaçado por uma obra da mesma empresa, que pretendia implantar fundações de concreto em sua vizinhança imediata, comprometendo o lençol freático e a ambiência daquele patrimônio da cidade. O artigo lamenta que o Palácio Capanema, referência internacional da arquitetura moderna, não foi negociado para a iniciativa privada, como desejava um ministro do governo anterior, conhecido por suas polpudas contas e investimentos em paraísos fiscais. Trata o episódio como “resistência ideológica”, talvez por contrariar interesses de alguns pares. No entanto, o decreto-lei n.25, de 30 de novembro de 1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, que não foi revogado, estabelece, em seu Art. 11, que “as coisas tombadas, que pertençam à União, aos Estados ou aos Municípios, inalienáveis por natureza, só poderão ser transferidas de uma à outra das referidas entidades.” Não há “resistência ideológica”, mas desconhecimento da legislação federal vigente, além do valor arquitetônico e cultural da edificação, reconhecido internacionalmente. Em seguida, exalta o resultado da “reforma”, que, na prática, descaracterizou alguns ambientes, como o antigo terraço e o restaurante original ali localizado, transformado em um “café panorâmico”, conforme imagens divulgadas nos meios de comunicação. Além disso, talvez por falta de pesquisa mais aprofundada, foram esquecidas as obras de Celso Antônio, como a “Mulher Reclinada” e, principalmente, a “Maternidade” que, por capricho, foi retirada do seu local original, doada ao antigo Estado da Guanabara e colocada num gramado, na Praia de Botafogo. O projeto destinado ao Ministério da Educação e Saúde foi objeto de um concurso público, realizado na década de 1930, que não construiu o vencedor, desenvolvido pelo professor Archimedes Memoria. A bibliografia oficial registra que o ministro Gustavo Capanema, com intervenção direta do arquiteto Lucio Costa, manifestou sua preferência pelas propostas modernistas, decidindo assim pelo pagamento do prêmio ao primeiro colocado, sem o aceite para sua execução. Para desenvolver o novo projeto, surgia uma equipe que se tornou icônica para a implantação da arquitetura moderna no Brasil: Lucio Costa, o coordenador inicial, ex-diretor da Escola Nacional de Belas Artes; Affonso Eduardo Reidy, arquiteto municipal, com experiência em obras públicas, além do convívio acadêmico com profissionais como Warchavchik e Agache; Jorge Moreira e Ernani Vasconcelos, que haviam participado do concurso com uma proposta modernista; Carlos Leão, pintor e arquiteto, que trabalhara no escritório Costa/Warchavchik; e Oscar Niemeyer, que se agregou ao grupo durante os trabalhos. Os primeiros estudos não agradaram ao ministro. Outra vez, por interferência direta de Costa, houve o convite àquele considerado por ele “o maior arquiteto do nosso tempo”, Le Corbusier, para consultoria sobre a implantação da Cidade Universitária e para o Ministério. Jeanneret-Gris, conhecido como Le Corbusier, chegou ao Rio de Janeiro em julho de 1936 e durante cerca de um mês promoveu conferências e participou diretamente nos projetos para os quais fora convidado. Frequentemente apresentava novas sugestões, descartando os trabalhos desenvolvidos pela equipe, às vezes de forma depreciativa, como apelidar de “múmia” a proposta inicial da equipe brasileira. Seus croquis indicavam uma escultura monumental de um “Homem Sentado”, elemento recorrente em diversos estudos posteriores, incluindo aqueles da comissão responsável projeto definitivo. O próprio ministro acolheu a ideia, defendendo-a com veemência para o presidente, pois afinal era o Ministério do Homem. Diversos croquis, incluídos em arquivos e na bibliografia sobre o Ministério, demonstram a preocupação da equipe de arquitetos em assinalar o caráter e a posição das obras de arte no edifício, desde os estudos preliminares. Algumas foram incluídas em outros projetos de integrantes da Comissão, como Costa e Niemeyer, para o Pavilhão da Feira de Nova York, em 1939, que apresentou uma réplica da “Mulher Reclinada”, de Celso Antonio. Segundo os princípios estabelecidos pelos arquitetos em conjunto com o ministro Capanema, as Belas-Artes estavam presentes por todo o edifício, interna ou externamente: pinturas a têmpera, azulejaria, paineis, esculturas em grupo, isoladas ou mesmo os bustos tradicionais de personalidade célebres no cenário nacional. Artistas modernos, independentemente de suas orientações ideológicas, tiveram seus nomes sugeridos e aprovados, sem qualquer interferência direta do presidente. Candido Portinari pintou paineis na sala de audiências e hall de recepção, ambos no gabinete ministerial e também no auditório, além da azulejaria presente nos grandes panos murais do pavimento térreo, em conjunto com Paulo Rossi-Ossir. Próxima aos Jogos Infantis, painel monumental no hall de recepção do ministro, havia uma réplica da estátua do Profeta Isaías, cujo original encontra-se na escadaria da Igreja do Bom Jesus, em Congonhas. A associação da obra de Antonio Francisco Lisboa com a pintura de Portinari pode ser uma forma de celebração da proximidade que a modernidade se encontrava em relação ao Patrimônio Nacional, em muito breve criando o IPHAN. Bruno Giorgi esculpiu os bustos de Gonçalves Dias, Rui Barbosa, José de Alencar, Osvaldo Cruz, Machado de Assis e Castro Alves, distribuídos pelo gabinete ministerial, além do “Monumento à Juventude Brasileira”, conjunto colossal disposto em posição estratégica nos jardins do pavimento térreo, voltado para a fachada envidraçada do edifício e a “Moça em Pé”, também colocada no térreo, porém em recinto fechado, o hall de acesso privativo às dependências do ministro. Celso Antonio foi o primeiro artista contratado para realização do “Homem Sentado” ou “Homem Brasileiro”, obra encomendada num momento inicial para ocupar, com destaque, o pavimento térreo. Antonio também esculpiu os bustos de Getúlio Vargas e Capanema, além da “Moça Reclinada”, originalmente disposta no terraço-jardim, anexo ao gabinete do ministro, “Mãe” ou “Maternidade”, coroando o núcleo central da escada helicoidal de acesso ao mezanino, e a “Moça Ajoelhada”. A “Moça Reclinada” foi retirada do jardim, transferida para o lugar original da “Maternidade”, enquanto esta foi guardada e inexplicavelmente transferida para um jardim, entre pistas de rolamento, fora de seu contexto original. ![]() Mulher Reclinada, de Celso Antonio, transferida dos jardins para o salão de exposição, onde ficava a Maternidade. Acervo Particular Celso Antonio também elaborou estudos para o grupo escultórico que ficaria na empena cega do auditório, atendendo a uma sugestão de Capanema, inspirada na Vitória de Samotrácia, obra também preterida após o arquiteto Lucio Costa associá-la a uma borboleta pregada na parede. Jacques Lipchitz, escultor lituano, recebeu a encomenda para realizar o “Prometeu Liberto”, conjunto que substituiria os estudos de Celso Antonio e de Victor Brecheret para a empena do auditório. O resultado que não logrou êxito em relação às dimensões originalmente propostas, substituído praticamente por um estudo, desagradando o autor. ![]() Prometeu Liberto, de Jacques Lipchitz, na empena do auditório. Foto William Bittar O resultado final gerou polêmicas, incompreensões, incluindo charges na imprensa. No entanto, também recebeu críticas favoráveis pela ousada interpretação figurativa de um mito grego. Adriana Janacópulos, a única representante feminina presente no corpo responsável pelas artes integradas, esculpiu “Mulher Sentada”, implantada no terraço-jardim contíguo ao gabinete do ministro, em conjunto com a Moça Reclinada, de Celso Antonio. A artista recebeu a encomenda em fevereiro de 1938 e seria, originalmente, em mármore branco Ravaccioni. A peça final, ampliada, foi executada em granito cinzento brasileiro, de Petrópolis, entregue em 1942. Segundo Fernando de Azevedo, é “uma obra prima de realismo poético. Bem construída e bem modelada, é rica de qualidades de finura e equilíbrio”. Observando-se o conjunto de esculturas incluído no edifício, com exceção aos bustos, pois todos são personalidades masculinas, tratados de forma absolutamente figurativa tradicional, as obras monumentais representam a figura feminina, incluindo “Juventude”, de Giorgi. Apenas o Prometeu de Liptchitz fugiu à regra, mas se tratava de um personagem mitológico. Há, portanto, um curioso paradoxo. A maioria dessas obras foi criação de artistas masculinos, pois apenas uma escultora, Adriana Janacópulos, fora contratada para executar sua “Mulher Sentada”, colocada no terraço-jardim do gabinete ministerial. ![]() Mulher Sentada, de Adriana Janacópulos, nos jardins do pavimento ministerial. Acervo Particular Já que havia a expressa intenção de associar a pasta a um “Ministério do Homem”, o provável símbolo seria uma estátua de 12 metros de altura, em granito, representando este personagem ideal, sempre tratado no masculino. Este “Homem Novo”, brasileiro autêntico, era uma proposta oficial muito clara, principalmente depois da decretação do Estado Novo. Por isso o cuidado nas escolhas dos temas e respectivos artistas na concepção inicial, depois bastante alterada, inclusive com a participação direta de Capanema, acatando sugestões do grupo modernista que integrava seu ministério. Atendendo a uma sugestão original de Le Corbusier, optou-se pela contratação de Celso Antonio para realizar a empreitada, jamais concluída, mas apresentada ao público junto à maquete do edifício, o “Homem Sentado”, durante a exposição do Estado Novo, em dezembro de 1938. Em 1943, a escultura seria substituída em temática e autoria pela “Juventude Brasileira”, de Bruno Giorgi, um jovem casal que estimulava o civismo entre os estudantes, caminhando pelo pátio em direção ao ministério. A “Nova Mulher”, companheira desse homem brasileiro, pouco aparecia com a mesma representatividade ou valorização, devido ao seu papel na sociedade. O próprio direito ao voto feminino era conquista muito recente. Ainda assim, era concedido apenas a casadas, desde que autorizadas pelo marido, ou viúvas que se sustentassem. Apenas em 1934 foi integralmente previsto na Constituição. Nas artes, havia o reconhecimento de artistas como Anita Malfati ou Tarsila do Amaral, na pintura, porém o quase anonimato das escultoras Julieta de França e Nicolina Vaz de Assis. A lista era muito restrita ou mesmo considerada pouco capaz de executar obras com tal monumentalidade. Ainda assim Janacópulos estabeleceu diretrizes para sua escultura, “Mulher Sentada”, desde os estudos iniciais, revelando em entrevista que “era necessário que a nossa esculptura fixe tal modelo, eternize as linhas e a vida interior da brasileira de hoje – tal como ela existe já no romance, na poesia, na música (na canção popular) e mesmo na pintura”. A força feminina, expressa com energia nas esculturas de Celso Antonio, seria observada pela expectativa da sociedade em relação ao papel da mulher, inclusive na arte, como um doce e sensual modelo, em suas “Maternidade” e “Mulher Reclinada”, plena de sensualidade tropical. Observando o conjunto escultórico do edifício, decorridos oitenta anos de sua inauguração, aquelas peças de arte talvez não tenham perpetuado sua mensagem original. Fora de seu contexto político, torna-se necessário estabelecer associações mais detalhadas para apreender a mensagem de sua época, inclusive para aqueles que irão ocupar o edifício reinaugurado. Além disso, quase todas as esculturas estão distribuídas no interior da edificação, exigindo algum estímulo e interesse do público para adentrar e compartilhar sua contemplação, exceção feita à “Juventude”, que passeia pelos jardins do pavimento térreo. Mesmo esse conjunto, pela sua implantação, não raramente um transeunte a associa ao edifício mais próximo, dissociando-a do diálogo idealizado originalmente. Outras peças foram transferidas, por questão de gosto pessoal, como no caso do arquiteto Lucio Costa, que aproveitou a realização de obras de manutenção e encaixotou a “Maternidade”, também de Celso Antonio, executada em mármore, em 1941, autorizando, em 1968, sua transferência para um jardim da Praia de Botafogo, no Rio de Janeiro. A praça, de difícil acesso, é cercada por vias com tráfego intenso, ficando a escultura exposta às intempéries e ao vandalismo que contribuirão para sua deterioração, caso a mesma não seja reincorporada à seu lugar de origem. ![]() Maternidade, de Celso Antonio, originalmente no salão de exposições do Ministério, transferida para a Praia de Botafogo, em 1968. Acervo Particular Cada escultura ali concebida definia uma intenção, relacionada diretamente ao seu lugar. Era a materialização do ideário de seus criadores, ainda que não lograssem o êxito pretendido no diálogo com o público em geral. Depois de concluído, cada elemento artístico passou a construir sua própria história, através da presença, ausência, remoção ou dos extáticos e estáticos silêncios, nem sempre ouvidos ou interpretados. Algumas daquelas esculturas nasceram incompreendidas, como o “Homem Sentado”, de Celso Antonio, nunca construído; a nudez sensual da “Moça Reclinada”, que causou alguns protestos dos mais conservadores; a força nativa da “Mulher Sentada”, de Janacópulos, acompanhando a “Moça” nos jardins ministeriais, pouco visitados pelo grande público; as duas peças que se encontram mais acessíveis à contemplação, o “Prometeu” de Lipchtiz, motivo de polêmicas, rejeições e pilhérias, desde sua colocação na empena cega do auditório, ou o colossal conjunto “Juventude”, de Giorgi, a única escultura que inclui um casal, mas nesse caso, com o sutil posicionamento da figura masculina à frente. Uma concepção forte e vigorosa, que homenageava os jovens, procurando aproximá-los do Estado Novo. O silêncio nos sussurra diante daquele casal, que sugere percorrer o átrio, caminhando entre os jardins de Burle Marx. Em algum momento, participaram de protestos estudantis, entre cassetes e gás lacrimogêneo. A altiva figura feminina pode estar caminhando atrás, porém certamente protegendo o companheiro, aguardando o momento de seguir ao seu lado, quem sabe até os jardins da Praia de Botafogo para resgatar a Maternidade para seu lugar de origem, de onde não deveria ter saído. ![]() Monumento à Juventude Brasileira, de Bruno Giorgi, nos jardins térreos do Palácio Capanema. Foto: William Bittar | A A |
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A A | Em meio à Marcha de Prefeitos, Congresso terá semana agitada nos bastidoresLívia BrazA tradicional Marcha dos Prefeitos à Brasília, organizada pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), ocorre nesta semana, reunindo gestores municipais de todo o país. Os prefeitos buscam pressionar o Congresso a fim de fortalecer o diálogo federativo e apresentar demandas prioritárias do movimento municipalista. Melhorias no pacto federativo, regras sobre emendas parlamentares, reforma tributária e a sustentabilidade fiscal devem estar entre as pautas. A tradicional Marcha dos Prefeitos a Brasília, organizada pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), ocorre nesta semana, reunindo gestores municipais de todo o país. Os prefeitos buscam pressionar o Congresso a fim de fortalecer o diálogo federativo e apresentar demandas prioritárias do movimento municipalista. Melhorias no pacto federativo, regras sobre emendas parlamentares, reforma tributária e a sustentabilidade fiscal devem estar entre as pautas. A presença massiva dos líderes municipais promete intensificar as negociações e influenciar as votações em andamento. Comissão Especial Debate Isenção do IRA Comissão Especial da Câmara dos Deputados continua as discussões sobre o projeto que propõe a isenção do Imposto de Renda para pessoas físicas que ganham até R$ 5 mil mensais. O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), enfatizou a importância de aprovar a medida até 30 de setembro, para que possa entrar em vigor em 2026, conforme o princípio da noventena. CPI do INSSA proposta de criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar irregularidades no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) está em fase de negociações. Os debates continuam nos bastidores e o presidente da Câmara, Hugo Motta, já disse que o Congresso está buscando soluções para a crise no órgão, incluindo projetos que visem aprimorar a gestão e a transparência. Recurso de Hugo Motta sobre Decisão do STFO deputado Hugo Motta apresentou recurso contra decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu ação penal contra o deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ). O recurso busca reverter a decisão e permitir o prosseguimento das investigações. A movimentação de Motta reflete as tensões entre o Legislativo e o Judiciário em torno de casos envolvendo parlamentares. AnistiaNo Senado, parlamentares buscam construir uma alternativa ao projeto de anistia para os condenados pelos atos de 8 de janeiro. O presidente da Casa, Davi Alcolumbre, vem falando sobre um texto alternativo para a proposta apresentada pela oposição. A pauta enfrenta resistência e líderes partidários trabalham para encontrar um texto que equilibre as demandas por justiça e reconciliação. O debate é sensível e promete dividir opiniões dentro e fora do Congresso. | A A |
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A nova Santa Aliança e seus objetivos opacosAo contrário do que se pensa, aproximação Trump-Big Techs não é de curto prazo. Visa amputar o Estado, impedindo-o de regular as corporações. E inviabilizar o espaço público, para estabelecer a gestão algorítmica da sociedade Como um bom quarentão adentrando sua crise de meia-idade, Mark Zuckerberg surgiu em 2025 renovado, assumindo os cachos loiros – nada mais Califórnia do que isso – e usando uma correntinha dourada estrategicamente posicionada para fora da camiseta escura, que dessa vez não trazia nenhum dizer. Nos últimos meses, ele já vinha ostentando em suas vestimentas frases como “Pathei Mathos”, expressão grega que pode ser traduzida por “aprendizado pelo sofrimento”. Deveríamos ter interpretado isso como um sinal, pois o anúncio recente foi de um rompimento com práticas de moderação de conteúdo por parte da Meta, as quais procuravam justamente evitar o martírio de seus usuários, e passam agora a permitir o que até então era considerado discurso de ódio. O líder da empresa comunicou também o rompimento com as políticas de colaboração com as agências de checagem de fatos, optando por um sistema semelhante ao adotado no X de Elon Musk, as “notas da comunidade”. A relação entre a fala e o figurino não é fortuita. Ao mesmo tempo que Zuckerberg abandona os famigerados sorry suits, os ternos e a cara assustada por que ficou conhecido, ao depor no Congresso dos Estados Unidos, entra em sintonia com o espírito tiozão bilionário macho alfa de seus companheiros de Vale do Silício, que tomaram de assalto a Casa Branca após a eleição de Donald Trump. Os líderes das Big Techs decididamente abandonaram a postura despojada “don’t be evil”, como dizia o antigo mantra do Google, e agora calçam os sapatos do mais perfeito herói randiano [1], obstinado em adequar o mundo à sua visão. Os impactos concretos da mudança das políticas da Meta precisam ser analisados em seus efeitos de curto, médio e longo prazos. Isso significa entendê-las em referência à competição imediata com outras plataformas, mas também em conjunto com uma visão de mundo comum entre os líderes das Big Techs em seus projetos de reorganização da sociedade. Tudo indica que um dos fatores determinantes para as mudanças políticas da Meta foi a eleição de Donald Trump. Na cerimônia de posse estavam todos lá: Zuckerberg, da Meta; Jeff Bezos, da Amazon; Sundar Pichai, da Alphabet/Google; Tim Cook, da Apple; Shou Zi Chew, do TikTok; e Sam Altman, da novata OpenAI. E, claro, Elon Musk, da Tesla/Starlink/X, que além de tudo virou conselheiro sênior do presidente. O Vale do Silício, que nos anos 1990-2000 dizia ter restrições éticas para a aplicação de suas tecnologias para a guerra (Evangelista, 2018), aprofundou suas relações como prestador de serviços aos diferentes níveis de operação do Estado. O ápice dessa virada é a unidade ofertada a Musk, o Doge, sigla que significa Departamento de Eficiência Governamental – ao mesmo tempo que é um escárnio que faz referência à criptomoeda/memecoin de mesmo nome, a dogecoin, promovida pelo empresário. Musk talvez seja o líder mais caricato das Big Techs em fase Trump: extravagante, sem medo do ridículo pessoal, de exercer e traficar influência, ou de fazer negócios no limite da legalidade. Sua busca por tornar o Estado mais eficiente significa praticamente destruí-lo por dentro. Musk é referência para Zuckerberg (e X para a Meta)Zuckerberg citou diretamente o X em sua declaração, de alguma forma tomando-o modelo na garantia da versão estadunidense da liberdade de expressão. Mas sua ação é também um ajuste em que um competidor econômico se adequa ao outro. Quando o Twitter foi comprado por Musk, se tornando o X, a Meta laçou o Threads, plataforma que emula as funcionalidades do primeiro, porém integrado diretamente ao Instagram. Foi um claro movimento de mercado em que se buscou oferecer aos usuários um refúgio moderado frente ao avanço do extremismo no Twitter. Este não só mudou suas políticas de monetização e de manejo dos conteúdos, como passou por uma transformação simbólica ao se tornar um espaço gerido por alguém que mais de uma vez amplificou ideias neonazistas (Beauchamp, 2025). Com o Threads, a Meta buscou também abocanhar uma fatia do uso público do Twitter, talvez uma das plataformas mais utilizadas por políticos e jornalistas e tida como central para os debates públicos. O problema de a Meta se aproximar da filosofia do X/Twitter é que, embora as elites conversem por meio da empresa de Musk, são as plataformas da Zuckerberg as de maior penetração e influência direta no mundo todo. Não bastasse a Meta ter o Facebook, ainda a maior rede social do planeta, ela é a dona do Instagram, que nasce como uma plataforma de fotos, mas gradualmente se torna também uma plataforma de vídeos curtos, além de ter se tornado lugar de referência para a divulgação de bares, restaurantes e eventos culturais. Mais importante ainda, a Meta controla o WhatsApp, aplicativo de mensagens que se tornou essencial na comunicação interpessoal, fonte de acesso a serviços de governo e principal fonte de informações para os brasileiros (Valente, 2019), ultrapassando a televisão. As novas políticas da Meta afetam diretamente a dinâmica social de plataformas como Facebook, Instagram e Threads e apontam para uma virada na estratégia de oferecimento de refúgios mais seguros. Essas mudanças de 2025 devem ser analisadas em seu conjunto e, ao lado do abandono das agências de checagem e da permissividade ao discurso de ódio, está a retomada da recomendação de conteúdos claramente políticos. Isso significa que a plataforma procurará estimular o espalhamento desse tipo de material, buscando o engajamento em torno deles. Mesmo quando não seguir o político A ou B é possível que o usuário seja exposto a esses conteúdos em sua linha do tempo. É inclusive algo coerente com as denúncias feitas pela ex-funcionária do Facebook, Frances Haugen, ainda em 2021, que revelou como a rede social estava ciente dos efeitos deletérios de mudanças em seus algoritmos de distribuição de conteúdos e optou por não fazer nada para não prejudicar os lucros. Em 2018, o Facebook implementou um algoritmo a partir do conceito de “Interações Sociais Significativas” (do inglês, Meaningful Social Interactions (MSI)). O objetivo declarado dessa mudança era priorizar conteúdos que fomentassem interações mais profundas entre amigos e familiares. Para isso, o algoritmo passou a valorizar mais as postagens que geravam comentários, compartilhamentos e reações, o engajamento ativo. Conteúdos de meios de comunicação tiveram sua visibilidade reduzida. A própria equipe do Facebook alertou que isso levou ao aumento da disseminação de conteúdos polarizadores, já que o engajamento foi usado como critério principal. A empresa optou por engavetar o problema. (The Facebook […], 2021). Máquina de radicalização políticaO WhatsApp não será afetado diretamente pelas mudanças, mas as plataformas de redes sociais precisam ser analisadas como um ecossistema complexo, em que os efeitos das novas regras se espalham e contaminam os diferentes ambientes. Em pesquisa que realizei durante as eleições de 2018, com Fernanda Bruno (Evangelista; Bruno, 2019), discutimos o papel do WhatsApp na eleição de Bolsonaro. Ali, mostramos como a função dos grupos do WhatsApp foi utilizada como estratégia de marketing eleitoral. Milhares de grupos de discussão, com diferentes nomes – muitos dos quais, em tese, serviriam para discutir assuntos não eleitorais ou mesmo não políticos –, se tornaram uma rede social paralela. Pessoas ligadas à então campanha de Jair Bolsonaro acompanhavam e controlavam o conteúdo desses grupos, os quais são fechados, portanto de difícil visualização e estudo por jornalistas e pesquisadores. Não à toa surgiram, à época, iniciativas como o Monitor do WhatsApp da UnB (Melo et al., 2019), buscando trazer à luz pelo menos parte desses conteúdos compartilhados. Ao estarem presentes em diversos desses grupos, os marqueteiros bolsonaristas formaram uma rede paralela e invisível de vigilância sobre a comunicação dos membros dos grupos. Porém, ao circular nesses ambientes, os conteúdos ganham tração e acabam sendo impulsionados em outras redes sociais. Os algoritmos dessas outras plataformas identificam que determinado conteúdo está tendo um acesso considerável e o impulsionam ainda mais. Para as redes sociais do Vale do Silício, não importa se aquele material é desinformação ou não, se é discurso de ódio ou não, o que vale é acelerar aquilo que demonstra alto potencial de viralização. A dissertação de Jane Mesquita, intitulada A máquina política e a política da máquina: um olhar sobre a direita no YouTube (2024), mostra como produtores de conteúdos em vídeo para o YouTube identificam o discurso da extrema-direita e a rede de compartilhamento bolsonarista como uma oportunidade de negócio. Canais do YouTube se alinham a certos temas da política para obter mais visualizações. Trata-se de uma sinergia entre o modelo de negócios desregulamentado das plataformas e os temas emocionais e sensacionalistas da extrema-direita. As já frágeis regras de moderação, aplicadas tibiamente, são propositalmente lentas e ineficazes na derrubada de conteúdos nocivos. As mudanças nas regras da Meta vão piorar a situação no Facebook, no Threads e no Instagram, mas devem afetar todo o ecossistema informacional. Modelo de negócios une atenção, vigilância informacional e lucrosOs achados de Mesquita (2024) ilustram bem o modo que as principais empresas de tecnologia arrumaram para conseguir lucros, sendo esse modo um elemento essencial para a epidemia da desinformação. Os dados de campo da pesquisadora atravessam o período da pandemia, no qual a desinformação, o discurso antivacinas – por meio do negacionismo – e a promoção de falsas soluções mágicas, associados ao oportunismo político, produziram consequências trágicas. Explorar algoritmicamente o sensacionalismo favorece os lucros das empresas, sem que elas sejam responsabilizadas, pública e civilmente, pela autoria dos conteúdos. Mas as Big Techs não são intermediárias neutras: elas são as responsáveis pelos estímulos econômicos que também sustentam a produção desses conteúdos, além de comandarem os algoritmos que valorizam as visualizações a qualquer custo em detrimento da qualidade. A atenção sempre esteve no cerne do modelo de negócio ligado à indústria da comunicação em geral. Atrair o olhar ou escutar o público é historicamente estratégico para as empresas de mídia, seja o jornal impresso com seus anúncios, sejam a TV e o rádio com seus intervalos comerciais. Para que esse processo não seja um vale-tudo, surgiram tanto medidas regulatórias por parte do Estado quanto regras da própria indústria, por meio das sociedades de classe (Evangelista, 2023). Regras semelhantes às que o Vale do Silício vem combatendo via lobby legislativo, sempre se escorando na ideia de liberdade de expressão acima de tudo. Tal defesa de ideais na verdade se conjuga muito à sustentação de um modelo de negócio. A economia da atenção e o capitalismo de vigilância não apenas compartilham suas lógicas, mas estão estruturalmente interligados (Bentes, 2021). O modelo de negócios das grandes plataformas digitais, como os produtos da Meta (Facebook e Instagram, em especial) e do Google, não se limita à venda de publicidade baseada na atenção dos usuários, mas, sim, à extração em massa de dados comportamentais, os quais são processados por algoritmos em busca da predição e modificação de ações humanas futuras. A atenção dos indivíduos funciona como um elemento fundamental envolvido na extração e monetização dos dados, dando sustentação à capacidade das empresas de não apenas prever, mas também influenciar escolhas e comportamentos. Como aponta Shoshana Zuboff (2021), o capitalismo de vigilância prospera ao criar mercados preditivos, nos quais o conhecimento antecipado das ações dos usuários e a possibilidade de influenciá-las se tornam ativos valiosos para empresas e anunciantes. Assim, a lógica da captação da atenção se desdobra em mecanismos de controle e gestão da conduta, configurando uma economia na qual a vigilância não é um efeito colateral, mas sim um pilar essencial da acumulação de capital. Ideologia californiana e o poder instrumentárioZuboff, que desenvolveu a ideia da vigilância como elemento fundamental do modelo de negócio das redes sociais, é autora de A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder (2019). O livro, no entanto, vai além da historicização de como as empresas aprenderam a ganhar dinheiro de verdade com a internet – o que nenhuma delas vinha conseguindo até então – e foi essa descoberta que levou à emergência das Big Techs. Quando discute o que chama de poder instrumentário, Zuboff mergulha nas distopias do Vale do Silício, o que nos dá pistas para entender os efeitos sociais profundos, de impacto global, e o motivo de as Big Techs estarem tão próximas ao governo Trump. Nos últimos anos, têm surgido barreiras regulatórias para a ação dessas empresas, e estar no centro do poder é uma maneira de derrubar essas barreiras e, se for possível, de corroer o Estado por dentro também. Os estudos sobre o Vale do Silício em seus aspectos ideológicos datam desde, pelo menos, o final do século XX. A crítica mais pungente partiu dos ingleses Richard Barbrook e Andy Cameron, que em 1995 escreveram um ensaio intitulado The Californian ideology (1996). Segundo essa perspectiva, a ideologia da Califórnia combina elementos da contracultura dos anos 1960-1970, como o idealismo hippie, com o empreendedorismo individualista dos yuppies dos anos 1980. Essa fusão gerou uma visão otimista e tecnodeterminista na qual a tecnologia digital é vista como uma força de emancipação social, ao mesmo tempo que reforça uma lógica neoliberal e de mercado. A ideologia rejeitou as versões mais à esquerda, que viam a internet como uma possibilidade de superação do capitalismo (Evangelista, 2018) e, ao contrário, consagrou-a como apoteose de um neoliberalismo digital. Com uma abordagem mais historiográfica, Fred Turner (2006) detalha como se deu a relação entre a contracultura e a cibercultura, explorando as divisões políticas entre os hippies e a nova esquerda dos anos 1960, assim como entre os setores mais técnicos, ativistas e amadores, que passaram a explorar as possibilidades da microcomputação. A vitória contemporânea desse neoliberalismo digital se dá pela ascensão das Big Techs, que passam a explorar os dados que trafegam na rede, e toda forma de rastros digitais que deixamos ao sermos interpelados pelos dispositivos cibernéticos, como insumo para o capitalismo. Zuboff aponta como o capitalismo de vigilância está lidando com o social tornando-o o mais previsível e influenciável possível. O poder instrumentário operaria sem necessidade de coerção explícita, modulando silenciosamente o comportamento humano em larga escala por meio de mecanismos digitais automatizados. Mas, ao mesmo tempo que é um projeto de domínio de mercado, o poder instrumentário tem uma base filosófica que, quando aplicada, segundo a autora, “refaz a natureza humana” (Zuboff, 2019, p. 352). Nesse contexto, a subjetividade e a reflexão humana são progressivamente diminuídas em favor de um regime de previsibilidade comportamental no qual a liberdade não é diretamente suprimida, mas debilitada de maneira imperceptível para servir a uma arquitetura invisível de controle e lucro. Para entender os fundamentos dessa nova forma de poder, Zuboff recupera os escritos utópicos e filosóficos de B. F. Skinner, pai do behaviorismo radical, e de acadêmicos/empreendedores contemporâneos como Alex Pentland, autor do conceito de “mineração da realidade”, no qual dados passivos dos usuários (como localização, padrões de movimento, chamadas telefônicas e interações on-line) se transformam em modelos preditivos do comportamento humano. Zuckerberg e Larry Page, do Google, são citados por Zuboff – e poderíamos adicionar Musk – como “executivos da utopística aplicada”, ou seja, estão imbuídos de implementarem as visões de sociedade de Skinner e Pentland. Walden II: uma sociedade do futuro, romance utópico de Skinner, escrito em 1948, ilustra as relações de poder inerentes a esse sonho tecnológico: um mundo gerenciado por técnicos, responsáveis pela engenharia de comportamentos sociais, sem conflitos e profundamente eficiente, pois as vontades de indivíduos, grupos e classes foram suprimidas por uma força de modulação comportamental cientificamente informada. É a anulação da política democrática em favor de um poder que controla o outro como se fosse uma espécie incapaz. Sustentado em uma economia de mercado, o poder instrumentário opera para o consumo incessante, a extração veloz de recursos naturais, a exploração máxima do trabalho e as instabilidades políticas que evitam obstáculos à privatização. Alternativas insubmissasPressionados pela sociedade civil, os governos tentam frear o poder das Big Techs. Leis como a GDPR (Regulamento Geral de Proteção de Dados) europeia e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) brasileira foram tentativas iniciais de dar algum regramento e justiça à coleta indiscriminada de dados. Mas são regulamentações com efeitos tímidos, que apostaram demais na autonomia dos indivíduos para dizer ‘não’ ao uso de seus dados e de quebra acabaram legitimar algumas práticas. No caso brasileiro, some-se ainda a fragilidade institucional e financeira da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), entidade responsável por fazer valer a lei. Mais recentemente, a Europa fez alguns avanços com o Digital Markets Act (DMA) e com o Digital Services Act (DSA), direção que o Brasil esboça seguir com discussões ainda iniciais por parte do Ministério da Fazenda, para regulamentar o mercado, e com o PL 2630/2020, a lei das fake news, alvejada em praça pública pelo lobby das Big Techs. Nenhuma dessas iniciativas, no entanto, parece enfrentar o problema em si, em sua dimensão correta. Pelo contrário, ainda que recentemente o governo federal tenha adotado ideias como “soberania digital” como slogan – assim como governos estaduais e municipais –, é perceptível e crescente a sua dependência das estruturas das Big Techs por meio de programas ingênuos de “transformação digital”. Sem uma política digital consistente e ampla, os serviços estatais vão sendo digitalizados por meio de hardwares e softwares do Vale do Silício, com órgãos nacionais muitas vezes atuando como brokers, revendedores de serviços de nuvem (onde estão os dados) estrangeiros. Nenhuma política regulatória conseguirá ser aprovada ou se tornará eficaz enquanto o Estado e a sociedade estiverem à mercê de Big Techs capazes de chantageá-los. Há alternativas, tanto em termos de softwares – como as redes sociais federadas e descentralizadas licenciadas como softwares livres e abertos –, quanto em termos de hardware. O Brasil tem excelência na formação de desenvolvedores e analistas de sistemas, que poderiam ser empregados na adaptação e na melhoria de softwares disponíveis (livres). Com o DeepSeek, a Inteligência Artificial (IA) chinesa, ficou claro que é possível superar a limitação de hardwares caros, cuja produção é controlada pelos países centrais, em favor de soluções mais baratas exploradas criativamente. Os avanços em IA, especialmente no que se refere aos Grandes Modelos de Linguagem (LLM), ligaram um alerta na sociedade com relação a um aprofundamento da distância entre aqueles que produzem e os que consomem tecnologia. O governo brasileiro respondeu de forma particularmente rápida, apontando para R$23 milhões em investimento entre 2024 e 2028 com o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA). Com menos investimento, mas com forte coordenação e planejamento, seria possível minimizar uma dependência tecnológica que não está no futuro, mas no agora, trata-se de uma possibilidade real hoje, com consequências muito concretas para a democracia brasileira. Ou ficaremos à mercê dos rompantes erráticos de Musk e das crises de meia-idade de Zuckerberg. Nota: [1] O herói randiano, inspirado na filosofia objetivista de Ayn Rand, representa o ideal do indivíduo autossuficiente, racional e inovador, rejeitando o coletivismo e o Estado e exaltando o empreendedorismo. Rand é descrita em artigos jornalísticos (Bilton, 2016) como tendo grande influência sobre os empreendedores do Vale do Silício, sendo que sua filosofia sugere que é desejável ser egoísta e ganancioso, em especial no mundo dos negócios, onde a mentalidade de vencer a qualquer custo seria o preço de mudar as normas da sociedade. | A A |
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A A | Orçamento de 2025: votação para fevereiro não afeta execução de despesas do governo, mas impõe restriçõesMarquezan AraújoPela primeira vez, desde 2021, o governo inicia o ano sem a aprovação da lei orçamentária anual. A expectativa é de que a proposta de orçamento seja votada somente em fevereiro. Pelo que prevê a legislação, o Orçamento precisa ser aprovado antes do recesso parlamentar. Caso isso não ocorra, os gastos do governo devem seguir uma regra específica nos meses seguintes, até a aprovação da medida. É o que explica o especialista em orçamento público, Cesar Lima. Pela primeira vez, desde 2021, o governo inicia o ano sem a aprovação da lei orçamentária anual. A expectativa é de que a proposta de orçamento seja votada somente em fevereiro. Pelo que prevê a legislação, o Orçamento precisa ser aprovado antes do recesso parlamentar. Caso isso não ocorra, os gastos do governo devem seguir uma regra específica nos meses seguintes, até a aprovação da medida. É o que explica o especialista em orçamento público, Cesar Lima. “O governo pode executar a proposta – no caso, a proposta que o governo encaminhou para o Congresso Nacional em agosto - num percentual de 1/12 avos por mês, e somente as despesas obrigatórias. Ou seja, as despesas discricionárias não serão executadas nesse momento. Isso inclui as emendas parlamentares”, explica. Nesse caso, Lima considera que a não aprovação do orçamento ainda em 2024 para o exercício de 2025 não vai afetar a execução de despesas por parte do governo federal. Apesar dessa possibilidade, o cenário aponta para restrições, uma vez que novos investimentos em infraestrutura, por exemplo, não podem ser realizados. Pelos temos da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), os gastos do governo devem ser destinados somente a ações específicas, como é o caso de despesas com obrigações constitucionais ou legais da União, como alimentação, saúde, previdência, abono salarial, transferências aos estados, entre outros. Além disso, os recursos podem ser utilizados em ações de prevenção a desastres ou resposta a eventos críticos em situação de emergência ou estado de calamidade pública, assim como em iniciativas relacionadas a operações de garantia da lei e da ordem. Outra possibilidade apontada é a destinação para concessão de financiamento ao estudante e integralização de cotas nos fundos garantidores no âmbito do Fundo de Financiamento Estudantil, o Fies. De acordo com o Ministério do Planejamento, com a publicação, ainda em 2024, da LDO já aprovada pelo parlamento, a execução ocorrerá com base nos valores previstos no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), até que a Lei Orçamentária Anual (LOA) seja aprovada pelo Congresso. | A A |
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Do globalismo ao neofascismoHistória de uma transição. Como as políticas neoliberais devastaram o Estado nacional, desampararam as maiorias e levaram parte delas a reivindicar os “líderes fortes” que a direita cultua. Como uma alternativa pode desmontar a farsa Por Wolfgang Streeck, em Compact. Tradução de Glauco Faria Com o advento da globalização neoliberal, a democracia como meio de intervenção política igualitária na economia caiu em descrédito. As elites de ambos os lados do Atlântico lideraram esse processo. Elas viam a democracia como tecnocraticamente “pouco complexa” diante da “complexidade exacerbada” do mundo; propensa a sobrecarregar o Estado e a economia; e politicamente corrupta devido à sua falta de vontade de ensinar aos cidadãos “as leis da economia”. De acordo com essa linha de raciocínio, o crescimento não vem da redistribuição de cima para baixo, mas de baixo para cima: na extremidade inferior da distribuição de renda, por meio da abolição do salário mínimo e da redução dos benefícios da seguridade social; e na extremidade superior, ao contrário, por meio de melhores oportunidades de lucro e salário, apoiadas por impostos mais baixos. O processo subjacente foi uma transição para um novo modelo de crescimento hayekiano, destinado a substituir seu antecessor keynesiano como parte da revolução neoliberal. Como em qualquer doutrina econômica, essas ideias devem ser entendidas como representações camufladas de restrições e oportunidades políticas decorrentes de uma distribuição de poder historicamente contingente, disfarçadas como manifestações de leis “naturais”. A diferença é que, no mundo hayekiano, a democracia não aparece mais como uma força produtiva, mas como uma pedra de moinho em volta do pescoço do progresso econômico. Por esse motivo, a atividade distributiva espontânea do mercado deve ser protegida da interferência democrática por muros chineses de todos os tipos ou, melhor ainda, pela substituição da democracia pela “governança global”. A desintegração do modelo padrão de capitalismo democrático em meio ao avanço da globalização foi muito analisada. No decorrer de cerca de duas décadas, desde o desaparecimento do comunismo soviético, o neoliberalismo teve um retorno surpreendente: Hayek, que por muito tempo foi ridicularizado como líder de um culto sectário, eclipsou figuras importantes dos assuntos mundiais como Keynes e Lênin. As ideias de Hayek penetraram profundamente no pensamento não apenas de economistas e instituições internacionais, mas também de governos nacionais e partidos políticos. Isso incluiu seus apelos por um sistema no qual a propriedade privada seria protegida internacionalmente e a liberdade do mercado global prevaleceria sobre a política nacional; pela liberalização por meio de sistemas jurídicos idênticos em Estados formalmente soberanos (“isonomia”); pela liberalização econômica em federações internacionais heterogêneas; pela proibição do intervencionismo estatal por meio da lei de concorrência internacional; e, não menos importante, pela livre circulação de mercadorias, serviços, capital e pessoas como meio de neutralizar economicamente o Estado-nação. Os governos nacionais e os partidos políticos começaram a compartilhar as suspeitas da teoria da escolha pública em relação a eles mesmos. Até ser desmistificado pela Grande Recessão, o neoliberalismo se tornou a doutrina político-econômica dominante do capitalismo moderno: a utopia de uma economia de mercado capitalista global autorregulável, na qual as políticas nacionais se limitavam ao estabelecimento e ao apoio dessa economia, à promoção de uma adaptação flexível a ela e, talvez, à preservação folclórica das tradições culturais e políticas locais para que as pessoas se sentissem em casa em uma sociedade cada vez mais sem teto. O avanço do modelo de crescimento globalizante-neoliberal foi acompanhado por uma erosão gradual do modelo padrão de democracia do pós-guerra. Desde o final da década de 1970, houve um declínio notável na participação em eleições de todos os tipos em todas as democracias capitalistas. Isso tem sido especialmente verdadeiro entre aqueles que estão na base da distribuição de renda e de oportunidades de vida, que são os que mais precisam de proteção social e redistribuição. Ao mesmo tempo, os partidos políticos, independentemente das diferenças institucionais nacionais, sofreram um declínio drástico no número de membros. O mesmo ocorreu com os sindicatos, que, desde o final da década de 1980, raramente conseguiram exercer seu direito de greve com alguma perspectiva de sucesso. Quanto ao sistema partidário, conforme demonstrado por Peter Mair, os partidos estabelecidos do centro se distanciaram cada vez mais da sociedade e de seus eleitores, indo para o aparato do Estado, e sua crescente estatização teve sua contrapartida na privatização da sociedade civil. A principal força motriz desse processo foi a compulsão por governar “com responsabilidade”, como diz Mair, derivada da própria globalização – em outras palavras, da real ou suposta falta de alternativas políticas ao pensamento neoliberal único do Consenso de Washington que se espalha. Assim como os sindicatos que querem preservar os empregos de seus membros só podem fazer exigências salariais moderadas, os partidos políticos que querem governar seus Estados, agora inseridos no mercado global, não podem se deixar influenciar demais por seus membros. Para usar os termos de Mair: a responsabilidade veio com o preço da capacidade de resposta. O colapso final do modelo padrão coincidiu com a globalização acelerada da década de 1990. Quatro aspectos desse processo são característicos da involução liberal da democracia capitalista. O que está envolvido aqui é uma mudança específica nos interesses e atitudes representados pelo centro do sistema político democrático, a formação de um padrão correspondente de oferta e demanda política e o aumento dos conflitos sobre o status do Estado-nação em face dos interesses crescentes na restauração de uma política de proteção e redistribuição. Em primeiro lugar, nos sistemas políticos padrão do pós-guerra, os partidos conservadores de centro-direita – que na Europa Continental geralmente tinham uma orientação democrata-cristã – haviam assumido a tarefa de conciliar o tradicionalismo social com a modernização capitalista. Isso se tornou cada vez mais difícil sob a pressão da globalização. O fim do socialismo de fato existente não significava apenas o desaparecimento da antítese do conservadorismo burguês, cuja existência havia facilitado a reconciliação do tradicionalismo com o capitalismo. Havia também novas pressões competitivas sobre os partidos de centro-direita para que abandonassem seu equilíbrio entre progresso e preservação e ficassem do lado dos destruidores criativos e dos modernizadores culturais em nome da competitividade econômica nacional. (Um exemplo entre muitos outros é a transição politicamente promovida para uma estrutura social de participação universal no mercado de trabalho, que enfraqueceu muito a receptividade da sociedade às políticas familiares conservadoras). Segmentos cada vez maiores do eleitorado culturalmente conservador ficaram politicamente desamparados. Em segundo lugar, ocorreu um desenvolvimento correspondente dentro dos partidos, principalmente social-democratas, na outra metade esquerda do centro político. A abertura acelerada das economias nacionais os privou do instrumento mais importante de sua caixa de ferramentas políticas: a política econômica keynesiana em sua versão pós-guerra. O mesmo pode ser dito sobre o rápido aumento da dívida pública após a década de 1970 e o fato de que, em mercados internacionais abertos, os custos de uma política social nacional e descomodificadora ameaçavam se tornar uma desvantagem competitiva. Se os partidos conservadores do centro se tornaram os gerentes do progresso capitalista, seus colegas social-democratas se tornaram seus facilitadores, garantidores e propagandistas, falando com entusiasmo a seus eleitores sobre a luz da prosperidade renovada no fim do túnel da globalização. Na Alemanha, por exemplo, os eleitores sociais-democratas tradicionais foram informados de que era melhor se reinventarem como empreendedores individuais – como a Egos Inc. – com o apoio do Estado, se necessário. Também lhes foi dito que a época moderna exigia uma política social voltada para o investimento, em vez de uma política voltada para o consumo; que a adaptação flexível era preferível à aposentadoria precoce; e que a solidariedade internacional agora significava submeter-se à concorrência nos mercados internacionais. Isso também não foi bem aceito. Enquanto os vitoriosos entre seus apoiadores se sentiam parcialmente representados – mas apenas parcialmente, já que boa parte deles se mudou para os novos partidos verdes de centro-esquerda – os perdedores da globalização, achando que tudo isso era demais para suportar, abandonaram a bandeira da modernização social-democrata, primeiro não comparecendo às urnas, depois se voltando para uma nova direita, longe do caminho democrático-capitalista. Em terceiro lugar, ao se unirem à frente unida da globalização, tanto a centro-direita quanto a centro-esquerda perderam suas identidades políticas, por mais vagamente definidas que tenham sido no início. No processo de adaptação ao mercado mundial, a política democrática do pós-guerra deixou de ser a busca de longo prazo de diferentes modelos de uma sociedade ideal – um modelo paternalista-hierárquico, por um lado, e um modelo igualitário e sem classes, por outro – e passou a ser uma série de reações pragmáticas e de curto prazo às condições do mercado mundial em constante e imprevisível mudança. Os políticos e a política se tornaram menos ideológicos do que nunca, sem perspectiva e, portanto, indistinguíveis uns dos outros. Dessa forma, a democracia poderia se transformar em pós-democracia, entretendo os eleitores como espectadores passivos, ao mesmo tempo em que trazia spin doctors e técnicos de relações públicas para elaborar políticas. O comportamento do voto – tanto as intenções contadas pelos estrategistas eleitorais quanto as escolhas dos próprios eleitores – mudou de acordo com isso: não mais orientado para um ideal social coletivo, um futuro comum pelo qual lutar como cidadãos, mas dissociado de posições de classe e ideologias, reagindo ao momento, em vez de a um futuro ideal. Como resultado, a rotatividade de eleitores entre os partidos aumentou, enquanto os antigos partidos do modelo padrão podiam contar cada vez menos com o apoio estável de uma base estabelecida. Em quarto lugar, a despolitização pragmática da política provocada pela globalização, especialmente na esfera da economia política, juntamente com o surgimento de uma política econômica uniforme e de acordo com o mercado, acabou com a estruturação do conflito político-partidário ao longo do eixo capital-trabalho, como havia moldado a diferenciação e a integração política no modelo padrão. Ele foi substituído por uma nova clivagem que atravessou a estrutura de patrocínio do antigo sistema, entre uma maioria cada vez menor que se sentia amplamente representada na política pós-democrática e uma minoria cada vez maior que se sentia excluída. Isso se refletiu, entre outras coisas, em um declínio na participação dos eleitores e em um alto grau de volatilidade eleitoral, bem como em um declínio dramático na confiança e nas expectativas dos cidadãos em relação à política e aos partidos em todos os grupos. Nos anos de internacionalismo e suas crises, outra clivagem se cristalizou entre uma orientação nacional e uma orientação internacional dos interesses políticos. Aqueles que sentiam que haviam se beneficiado da globalização de uma forma ou de outra se encontravam na estreita faixa da política da Terceira Via. Por outro lado, entre os perdedores econômicos e culturais da globalização, aqueles que não se viam representados pelo centro político reorganizado, desenvolveu-se uma preferência há muito não articulada e politicamente submersa por uma restauração da autonomia política e da capacidade do Estado-nação. Essa preferência podia ser cada vez mais mobilizada por partidos e movimentos orientados para um nacionalismo de direita ou de esquerda – e, por esse motivo, excluídos como “populistas” do espectro dominante. A crise de 2008 marcou o fim do auge do neoliberalismo. Muito havia sido prometido e muito pouco foi cumprido. As dúvidas sobre a democracia, se não sobre o capitalismo, começaram a crescer entre as pessoas comuns, que se redescobriram e se reconstituíram politicamente de várias formas e cores, tanto como manifestantes quanto como eleitores. A perda da estabilidade e da confiança, a distribuição cada vez mais desigual da riqueza, que cresce cada vez menos, e a estagnação econômica, apesar das demandas por mudanças estruturais, juntamente com a crescente insegurança cultural e o desprezo da elite pelos que foram deixados para trás, deram origem a contra-movimentos populares plebeus vindos de baixo. O regime neoliberal pós-democrático reagiu a esses movimentos com horror. Independentemente de terem surgido da experiência da vida cotidiana globalizada ou de terem sido oportunisticamente fomentados por novos atores políticos, o que eles tinham em comum era e é uma profunda desconfiança de qualquer tipo de “abertura” com eventos incertos, do livre comércio à migração, acompanhados por uma redescoberta da solidariedade local e da justiça local, em nível regional, nacional e de classe, em todas as combinações imagináveis. Já nos anos anteriores à crise, a globalização havia sido objeto de protestos; depois, por meio de uma infinidade de desvios, ela provocou uma repolitização de uma vida política que estava paralisada há algum tempo, culminando em uma disputa fundamental, mais ou menos articulada, sobre o lugar correto e legítimo da política, da democracia e da solidariedade na sociedade. Hoje, em todos os países do capitalismo da OCDE, alguns dos remanescentes do modelo padrão de democracia do pós-guerra estão sendo redescobertos e utilizados como recursos institucionais para a resistência popular contra a modernização capitalista e cultural acelerada e a mudança estrutural politicamente desempoderadora impulsionada pela globalização. O que isso significa é uma luta amarga sobre o futuro caráter do Estado, tanto nacional quanto internacional: centralizado e integrado para proteger a globalização, ou descentralizado e subdividido para impedir seu avanço; elitista ou igualitário; (pequeno) burguês ou plebeu; tecnocrático ou democrático? Nos anos anteriores à Covid, começaram a surgir os contornos de uma reversão da tendência de queda na participação política, com um aumento nos protestos e greves mais frequentes. Os partidos de modelo padrão abandonados e seus aliados na mídia tiveram pouco a ver com isso. Na verdade, eles combateram a nova onda de politização com todo o arsenal de armas de que dispunham – propagandísticas, culturais, legais, institucionais – muitas vezes, sem querer, soprando vento nas velas daqueles que eles haviam enquadrado como inimigos não apenas da democracia, mas também do Estado. Três décadas de centralização e unificação político-econômica neoliberal mudaram as democracias ocidentais em seu cerne: partidos políticos centristas declinaram conforme a participação eleitoral se recuperou, sindicatos perderam membros e status político, e novos partidos de direita, ou correntes populistas dentro dos partidos existentes, corroeram o conservadorismo centrista, incluindo a social-democracia tradicional. Em 2023, a nova oposição havia se transformado em uma força política mais ou menos influente a ser considerada em todos os países ocidentais, em alguns se tornando um parceiro informal ou formal no governo, às vezes até mesmo como sua força política dominante. Isso vale para os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, bem como para a Itália, França, Áustria e toda a Escandinávia, sem falar na Polônia, Hungria e Europa Central e Oriental de forma mais ampla. O que quer que possa dividir os novos nacionalistas de direita, o que eles têm em comum é a oposição à internacionalização e à centralização e integração da governança que vêm com ela, trazendo à tona e politizando uma linha de conflito nas democracias capitalistas inerente à Nova Ordem Mundial pós-1990 do neoliberalismo global. Hoje, as pressões por autogoverno local — por descentralização da governança por meio da restauração da soberania nacional — e a questão de como responder a elas são uma questão central de políticos e da política em contextos políticos e econômicos nacionais e internacionais. Forças políticas que insistem na soberania de seus Estados-nação — em relação a outros Estados imperiais, bem como a organizações internacionais dominadas por estes últimos, ou a mercados livres globais ou continentais — podem alegar que estão defendendo uma condição indispensável da democracia nacional, mesmo que a queiram apenas para si, e não também para seus oponentes. Aqueles que tentam preservar a democracia liberal do período neoliberal tendem a subestimar o poder da oposição a ela, enquanto superestimam a capacidade de governar, política e tecnicamente, de organizações supranacionais e países hegemônicos imperiais. A democracia neoliberal foi incapaz de evitar uma profunda perda de confiança em suas instituições por parte dos cidadãos, o que é outro resultado dramático de longo prazo das três décadas neoliberais desde o início dos anos 1990. Nem o centralismo neoliberal foi capaz de sustentar instituições nacionais ou internacionais capazes de estabilizar uma economia de mercado global; como os mercados falharam, a política neoliberal, que havia apostado em sua infalibilidade, estava fadada a falhar também. A revolução neoliberal havia destruído completamente a ordem política e social do compromisso do pós-guerra, descartando um simples retorno a ele. Isso torna ainda mais necessário entender as causas precisas do fracasso do centralismo supranacional para entender os possíveis contornos da democracia pós-globalista e pós-neoliberal. Somente dessa forma podemos esperar preencher o vazio político deixado pelo neoliberalismo com um equivalente funcional do modelo padrão do pós-guerra. Como seu predecessor, um modelo pós-globalização de democracia — descentralizada — teria que ser incorporado em uma ordem internacional acomodatícia que respeitasse a autonomia política local e a soberania do Estado nacional como condições fundamentais para a democracia na sociedade e na economia. A este respeito, o destino da União Europeia oferece lições sobre a fragilidade do internacionalismo estatista, os limites da governança supranacionalmente centralizada, da integração como unificação — em suma, sobre a futilidade de tentativas mais ou menos bem-intencionadas de consignar o Estado-nação como o local da soberania distribuída para a lata de lixo da história. Olhando em particular para o estado da União Europeia no final do neoliberalismo e no início da pós-globalização, pode-se aprender sobre as forças de resistência a uma ampliação supranacional hierárquica-tecnológica da política, como aquelas que afastaram os Estados-membros da UE que deveriam crescer para se tornarem os Estados Unidos da Europa. Além disso, a maneira como as rédeas foram apertadas novamente e a centralização restaurada no curso da guerra na Ucrânia sugere que a unificação supranacional de Estados-nação soberanos é melhor perseguida com a ajuda de um inimigo ou aliado comum — um Estado imperial agindo como um unificador externo ao definir ou mesmo criar um problema de segurança internacional comum a ser tratado supranacionalmente sob liderança imperial: uma questão de vida ou morte, bem diferente de uma rendição voluntária da soberania nacional em prol da prosperidade econômica e do conforto cosmopolita, e extremamente perigosa para começar. Nota: Este ensaio foi adaptado do último livro do autor, Taking Back Control?: States and State Systems After Globalism, publicado pela Verso. | A A |
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