REPORTAGENS ESPECIAIS

 







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Taurus e Embraer doam milhares de dólares a políticos dos EUA
    

Enquanto o Brasil segue sem regulamentar o lobby, empresas nacionais têm adotado estratégias para tentar influenciar a política nos Estados Unidos — e algumas delas já fazem doações diretas a políticos de lá. É o caso da Taurus e da Embraer, duas gigantes industriais que utilizam subsidiárias locais para contornar as restrições impostas a entidades estrangeiras pela legislação americana e fazer lobby nos EUA.


Levantamento da Agência Pública com base em registros oficiais mostra que a Taurus, fabricante brasileira de armas, doou em 2024 cerca de 25 mil dólares (R$ 135 mil) ao Protect Liberty PAC, comitê que financia candidatos pró-armamento nos EUA. A doação foi feita por meio da subsidiária americana da empresa, escapando das exigências da Foreign Agents Registration Act (FARA), que proíbe doações diretas de estrangeiros.


Já a Embraer, terceira maior fabricante de aviões do mundo, mantém desde 2009 um Political Action Committee (PAC) próprio, com o qual já distribuiu 237 mil dólares (R$ 1,3 milhão) a campanhas de congressistas norte-americanos. Ao menos 13 parlamentares apoiados pelo PAC da Embraer rejeitam publicamente o resultado das eleições presidenciais americanas de 2020, quando o democrata Joe Biden venceu as eleições.


“Todas as doações da empresa seguem rigorosamente as regras de compliance aprovadas no Conselho de Administração e são definidas de acordo com a estratégia da empresa, sempre seguindo seu objetivo estratégico”, disse um porta-voz da Taurus à reportagem.


Procurada, a assessoria da Embraer não respondeu até a publicação da reportagem.


As doações fazem parte de um movimento mais amplo de profissionalização do lobby brasileiro em Washington, que contrasta com a realidade doméstica: no Brasil, a atividade permanece sem regulamentação federal, ainda associada à corrupção e exercida, em geral, de forma velada.


A Embraer conseguiu escapar das medidas do novo tarifaço de Donald Trump. A empresa havia declarado que os impostos poderiam causar um impacto negativo tão grande como o da pandemia de COVID-19, uma vez que os EUA são o principal consumidor da empresa. Segundo o Governo Federal, em julho havia cerca de 1,7 mil aviões da Embraer operando no mercado americano, e o tarifaço aumentaria em 9 milhões de dólares o custo de operação por aeronave.


Já as ações da Taurus vem despencando com a aproximação do tarifaço de 50% sobre algumas exportações brasileiras. A empresa chegou a ameaçar que toda a produção poderia ser transferida para o exterior, mas retrocedeu. Além de negar a ideia, a empresa declarou ter formado “um estoque de produtos nos Estados Unidos que consegue suprir o mercado norte-americano por 90 dias”.


Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante Cerimônia de entrega de aeronave da Embraer à Azul, na Fábrica da Embraer, Hangar F300, em São José dos Campos (SP)


Lobby nos EUA é legal, mas clandestino em casa

Nos Estados Unidos, o lobby é regulado por duas leis: o Lobbying Disclosure Act (LDA), de 1995, que exige registro e detalhamento das atividades de lobistas, e a FARA, de 1938, voltada especificamente a interesses estrangeiros. Para atuar legalmente, empresas brasileiras criam subsidiárias nos EUA — estratégia que, embora exija transparência, permite inclusive doações a políticos de lá, desde que feitas por entes legalmente registrados no país.


Esse arranjo tem permitido que empresas como a Taurus e a Embraer façam Lobby nos EUA e influenciem decisões políticas junto aos políticos estrangeiros com mais liberdade e visibilidade do que seria possível no Brasil.


Ambas mantêm contratos com a Ballard Partners, uma das firmas de lobby mais influentes do país, com laços históricos com Donald Trump — Pam Bondi, hoje procuradora-geral dos EUA, já foi associada ao escritório. Na útlima semana de julho, Brian Ballard, dono da firma, disse em entrevista à CNN que o presidente americano “vê o governo brasileiro como não tão pró-EUA como foi no passado e como deveria ser.” A recomendação do lobista era que o governo brasileiro corresse atrás de toda a equipe econômica de Trump, não somente dos aliados mais próximos do Executivo.


No Brasil, a Ballard Partners é ligada ao grupo Esfera Brasil, presidido pelo dono da CNN Brasil, João Camargo, e que mantém conexões com ministros do Supremo Tribunal Federal e o atual líder da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB). Além do Brasil, a empresa tem filiais ou alianças no Japão, Reino Unido, Coreia do Sul, Canadá, Itália e México. Alguns dos clientes de Ballard incluem não somente figuras políticas, mas também big techs, como o TikTok, a Amazon, o Google e a Uber.


Em abril de 2025, a Taurus oficializou seu registro com a Ballard para atuar na área de “manufatura”. Embora o contrato não especifique valores, o envolvimento com o Protect Liberty PAC revela o interesse da empresa em usar o Lobby nos EUA para influenciar políticas armamentistas dos EUA — tema sensível tanto lá quanto no Brasil.


Já a Embraer doou cerca de 237 mil dólares — o equivalente a R$ 1,3 milhão na cotação atual — para campanhas de deputados e senadores americanos, escolhidos por sua influência em defesa, infraestrutura e comércio. Das doações aos deputados, que somaram 192 mil dólares, a grande maioria, 74% foram para republicanos. Entre os senadores, dos 44,5 mil dólares distribuídos, 67% foram direcionados ao Partido Republicano.



Políticos trumpistas faturam com lobby de empresas brasileiras


Alguns nomes escolhidos pela Embraer para suas doações se destacam. Entre eles, estão Vern Buchanan, Bill Posey, Rick Scott, Andy Biggs, Mario Diaz-Balart, John Rutherford, Michael Waltz e Austin Scott. Esses parlamentares são notórios por seu apoio explícito à agenda conservadora e nacionalista de Trump, tanto por meio de votações decisivas quanto em temas como imigração restritiva e as políticas econômicas protecionistas.


A empresa também apoiou Marco Rubio em quatro campanhas ao Senado. Hoje, Rubio ocupa um posto-chave no governo Trump como Secretário de Estado, responsável pela política externa americana. Ele é bastante próximo da família Bolsonaro: Rubio foi um dos primeiros políticos do grupo trumpista a receber Eduardo Bolsonaro após a vitória do pai à presidência, em 2018. Ele também defendeu publicamente as sanções de Trump contra o ministro do STF Alexandre de Moraes, endossando o argumento de que o tribunal estaria realizando uma “caça às bruxas política”.


Marsha Blackburn, única candidata ao Senado apoiada pelo PAC da Embraer em 2024, é uma senadora republicana conhecida por sua postura firme à direita e por abraçar teorias conspiratórias controversas. Ao menos treze parlamentares apoiados pelo PAC estão abertamente alinhados à narrativa de que as eleições presidenciais de 2020 foram fraudadas.


Até julho de 2025, 178 brasileiros — entre indivíduos e organizações — estavam registrados na FARA, incluindo 34 entes públicos, como governos estaduais, ministérios e empresas estatais. Entre esses, o partido Republicanos é o único partido político brasileiro com representação oficial registrada, demonstrando uma atuação formal no campo da representação política internacional, mas não necessariamente uma relação direta e exclusiva com doações para campanhas eleitorais. É importante destacar que o registro na FARA indica atividades de lobby ou representação de interesses estrangeiros, mas não implica automaticamente em envolvimento financeiro, como doações eleitorais, que são reguladas por outros mecanismos e legislações específicas.


Segundo dados da organização Open Secrets, o Brasil investiu pouco mais de 5 milhões de dólares em atividades de lobby nos EUA desde 2015 — valor modesto frente aos outros membros do BRICS. A China, por exemplo, desembolsou mais de 90 vezes mais: 457 milhões de dólares no mesmo período; Rússia, Índia e África do Sul também superam amplamente o investimento brasileiro.




Lobby no Brasil: 40 anos de promessas sem regulamentação


O interesse em regulamentar as atividades de grupos de pressão no Brasil remonta a meados da década de 1970, quando, em 1972, durante um dos períodos mais duros da ditadura militar, a Câmara dos Deputados incluiu no regimento interno um artigo que regulava o credenciamento de entidades capazes de fornecer subsídios a relatores e comissões legislativas.


Mas desde então, o lobby segue desregulamentado no Brasil. A primeira tentativa de criar uma legislação federal ocorreu em 1984, com o então senador Marco Maciel. Em 5 de dezembro de 1984, ele apresentou um projeto de lei sobre o tema, que foi arquivado em 1987. Desde então, diversos projetos foram arquivados ou desfigurados no Congresso.


Em 2025, o Brasil segue sem uma regulamentação federal específica para a atividade, tema que se arrasta há mais de quatro décadas no Congresso.


Atualmente, tramita o Projeto de Lei n.º 1.202/2007, de autoria do deputado Carlos Zarattini (PT-SP). Aprovado pela Câmara dos Deputados em novembro de 2022 e enviado ao Senado, o texto estabelece regras para a atuação de lobistas e representantes de interesse, prevendo o credenciamento obrigatório por meio da Controladoria-Geral da União (CGU), quarentena de até um ano para ex-agentes públicos, exigência de formação específica, prestação de contas das atividades e a proibição de vantagens indevidas — admitindo apenas brindes e hospitalidades compatíveis com eventos profissionais. 


Desde que chegou ao Senado, o projeto, agora tramitando sob o número PL 2.914/2022, sofreu alterações e substitutivos. O relator é o senador Izalci Lucas (PL-DF), parlamentar atualmente envolvido nas discussões sobre a regulamentação de serviços de tecnologia e telecomunicações. 


Em substitutivo apresentado por Lucas, foram alterados pontos centrais do projeto original, estabelecendo um sistema descentralizado de registro de audiências e um credenciamento opcional para representantes de interesse, além de excluir a exigência de cadastro prévio para a atuação desses profissionais. A proposta, entretanto, enfrenta críticas pela falta de incentivos para o credenciamento voluntário e pela escolha de sistemas descentralizados de divulgação, o que, segundo especialistas, pode comprometer a efetividade da transparência pretendida pela regulamentação. A matéria está atualmente parada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.


Edição: Bruno Fonseca


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Pablo Mariconda: o grande pensador que perdemos

    

Nos deixou quem ajudou a consolidar o estudo da filosofia da ciência, as implicações éticas do uso das tecnologias e os valores do conhecimento. Rigoroso, contribuiu para criar alternativas eficazes à tecnociência orientada para o lucro

Por Eliakim Ferreira Oliveira e Otto Crespo-Sanchez da Rosa, em A Terra é Redonda

1.

É bastante difícil mensurar a importância de Pablo Rubén Mariconda para a filosofia no Brasil e para aqueles que tiveram o privilégio de compartilhar a sua presença. Tendo ingressado como aluno do Departamento de Filosofia da USP em 1968, ainda na época da Rua Maria Antônia, Pablo Rubén Mariconda esteve entre os responsáveis pela consolidação da área de teoria do conhecimento e filosofia da ciência da USP, substituindo, nos anos 1970, Hugh Lacey, o primeiro professor dessa área.

Precisamos ressaltar a sua enorme produção intelectual, que vai desde trabalhos sobre a filosofia clássica da ciência, como Pierre Duhem e Karl Popper, passando por trabalhos fundamentais sobre a revolução científica dos séculos XVI e XVII (Francis Bacon, Galileu Galilei, Marin Mersenne, René Descartes, Isaac Newton), até o desenvolvimento, junto a Hugh Lacey, de uma filosofia da ciência que tem como modelo a interação entre a atividade científica e os valores.

Esta permite tanto refletir sobre questões contemporâneas – a tecnociência comercialmente orientada (a atividade científica marcada por estratégias descontextualizadoras e a produção de patentes) e os efeitos colaterais das aplicações tecnológicas nela baseadas (como a utilização de sementes transgênicas na agricultura) –, quanto apontar as credenciais científicas das alternativas (o pluralismo estratégico na organização da atividade científica e tecnologias alternativas, como as da agroecologia).

Assim como, nos anos 1960, o modelo de Thomas Kuhn representou uma inflexão na filosofia da ciência, o modelo de Hugh Lacey e Pablo Rubén Mariconda representa uma nova inflexão, que reúne de maneira rigorosa filosofia de ciência e filosofia da tecnologia.

2.

Mas, sobretudo, queremos destacar a figura congregadora e generosa do professor Pablo Rubén Mariconda, responsável pela criação da Associação Filosófica Scientiae Studia, na qual trabalhou intensa e ininterruptamente para a publicação de obras de referência e onde construiu um centro de estudos especializado, talvez o maior do Brasil no tocante às áreas de filosofia da ciência e filosofia da tecnologia.

Era na Associação que nos reuníamos quinzenalmente para discutir acerca da relação entre valores e atividade científica, filosofia da tecnologia e fundamentos éticos do fazer científico. Na Associação tínhamos o privilégio da orientação do professor Pablo Rubén Mariconda, sempre atenta e rigorosa, com sua capacidade de fazer com que nos sentíssemos em família.

Era admirável, aliás, o modo como Pablo Rubén Mariconda se preocupava com o desenvolvimento intelectual de seus orientandos, sempre pronto para auxiliar no que fosse necessário: na leitura atenta dos textos, em reuniões ordinárias e extraordinárias, na produtiva discussão em grupo, nas sugestões de leitura e no estímulo à publicação.

Nessas interações, manifestavam-se o entusiasmo e a dedicação para com a vida acadêmica. Pablo Rubén Mariconda tinha enorme ímpeto para o trabalho e para a criação filosófica, sempre articulando projetos de estudo e traduções. Na interação com os alunos, sobressaía-se a relação afetiva e o respeito intelectual.

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Smart Sampa: Grávida é presa em posto de saúde e acaba tendo parto prematuro


Grávida de oito meses, Gabrieli Crescencio foi presa no momento em que levava o filho de dois anos, que tem epilepsia, para uma consulta médica em São Paulo. Ela foi identificada como foragida por uma das milhares de câmeras com reconhecimento facial instaladas pela prefeitura em ruas e órgãos públicos – incluindo unidades de saúde – no programa Smart Sampa. Segundo ela, a abordagem dos policiais foi agressiva a ponto de provocar o rompimento da bolsa e induzir um parto prematuro.


O boletim de ocorrência confirma que a mulher entrou em trabalho de parto durante a abordagem. “Antes de encerrada a apresentação da ocorrência, a bolsa de Gabrieli estourou e por isso ela foi socorrida pela mesma equipe ao Hospital do M’Boi Mirim, onde se encontra internada e em trabalho de parto”, registra o documento lavrado na 47a Delegacia de Polícia, no Capão Redondo, em 27 de janeiro.


O boletim também informa que Crescencio estava com 37 semanas de gestação — início do nono mês. O registro médico do parto, porém, aponta 34 semanas, o que caracteriza prematuridade. Para a mulher, “os policiais aumentaram o tempo de gestação no documento para não parecer que a abordagem antecipou o parto”.


POR QUE ISSO IMPORTA?

O sistema de câmeras de reconhecimento facial do Smart Sampa é uma das principais bandeiras da prefeitura da capital paulista para combater a violência, mas a tecnologia não é à prova de erros.

Grávida de oito meses, Gabrieli Crescencio foi presa ao ser identificada pelas câmeras de um posto de saúde. Na abordagem, ela entrou em trabalho de parto prematuro.

Crescencio, que tem 25 anos, relata que foi arrastada pelo braço e empurrada para dentro da viatura enquanto carregava o filho pequeno no colo. Foi nesse momento, segundo ela, que começou a sentir dores abdominais. Já na delegacia, afirma ter escorregado em um líquido no chão da cela e caído. “Ali percebi que a bolsa já tinha estourado. Fiquei no chão, e o líquido escorreu pela minha perna. Chamei por ajuda, mas os policiais riram e disseram que era xixi”, conta.


Ainda segundo ela, uma policial feminina interveio e afirmou que a mulher tinha que ser levada para um hospital com urgência. Ela foi colocada em outra viatura, onde ouviu dos policiais para “não se mexer muito para não sujar o carro”.

Grávida foi identificada por câmeras na UBS Jardim Macedônia

Após o parto, passou os próximos 10 dias internada sob custódia. Segundo a mulher, os policiais que ficaram com ela no quarto eram todos homens e impuseram restrições a necessidades básicas, como proibir que escovasse os dentes ou usasse o banheiro. O bebê recém-nascido foi levado a uma UTI Neonatal, onde passou dois meses internado.


Em 2021, Crescencio foi investigada por suposto envolvimento com tráfico de drogas pela polícia de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, onde residia na época. No entanto, nunca foi presa, pois não houve flagrante, ela tinha ficha limpa e três filhos pequenos que dependiam dos seus cuidados. Ficou em liberdade provisória, com a obrigação de se recolher à noite e informar qualquer mudança de endereço às autoridades.


O caso nunca foi julgado, e ela não foi condenada. A primeira audiência só deve ocorrer nas próximas semanas. O motivo para a prisão agora, quase quatro anos depois, é porque ela não comunicou sua última mudança de endereço. “Eu nem sonhava que estava sendo procurada”, diz. “Recebi um e-mail sobre a audiência, então imaginei que eles sabiam onde eu estava. Nunca me escondi.”

A defensora pública que cuida do caso, Mariane Vieira Rizzo, diz que pediu a liberação de Crescencio para responder em liberdade assim que soube da detenção. O pedido foi atendido rapidamente tanto pelo Ministério Público como pela juíza responsável.


Segundo a defensora, ser considerada foragida não quer dizer que a pessoa esteja de fato fugindo. “Se ela mantiver o endereço atualizado e cumprir as medidas cautelares, não há motivos para preocupação. Mesmo se um dia for condenada, poderá responder em liberdade, desde que cumpra os requisitos para isso”, explicou.


Hoje, Crescencio passa por acompanhamento psiquiátrico por ter desenvolvido estresse pós-traumático com o episódio, de acordo com ela. O filho, batizado como Anthony, recebeu alta da UTI, mas ainda precisa de cuidados especiais.


Uma em cada cinco prisões ocorre em unidades de saúde

Gabrieli Crescencio é uma das 182 pessoas presas por meio do sistema de reconhecimento facial das câmeras do Smart Sampa desde que o programa entrou em operação na capital paulista, em novembro do ano passado, até o dia 8 de abril. Esse número representa quase 20% de todas as prisões realizadas por reconhecimento facial no período, que totalizam 978, segundo a Prefeitura de São Paulo.


“O caso é absolutamente estarrecedor e mostra os perigos do Smart Sampa e das tecnologias de reconhecimento facial”, afirma Marina Dias, diretora do Instituto de Defesa do Direito de Defesa. “À pretexto de uma política de segurança pública, acaba-se por afrontar direitos fundamentais como o acesso à saúde, que está previsto na Constituição Federal, é universal e precisa ser garantido independentemente de a pessoa ter algum problema com a Justiça.”


Para ela, o monitoramento em unidades de saúde tende a afastar pessoas que precisam de ajuda médica. Isso inclui não só quem tem pendências com a Justiça, mas também ex-detentos que já cumpriram pena. Há ainda o risco de que outras pessoas — especialmente negras e moradoras da periferia — evitem buscar atendimento por medo de serem confundidas e presas por engano, o que acontece com frequência.

Câmeras do programa Smart Sampa instaladas na região da Capão Redondo, zona sul de São Paulo

Essa situação já estaria acontecendo, segundo Flávia Anunciação, diretora de Saúde do Sindicato dos Servidores Municipais de São Paulo. Ela diz que o sindicato recebeu denúncias de pessoas que abandonaram o programa de tratamento para tuberculose com medo de serem presas. “Sem continuidade, a doença se agrava e pode ser transmitida para outras pessoas, colocando toda a sociedade em risco”, afirma. A  Secretaria Municipal de Segurança Urbana (SMSU) afirmou por nota que “o Smart Sampa atuou corretamente no caso” da mulher. A nota informa que a pessoa mencionada pela reportagem tem condenação por tráfico de drogas, embora ela nunca tenha sido julgada nem condenada.


A nota diz que na data em que foi flagrada pelas câmeras do Smart Sampa, Crescencio “constava como foragida na lista de procurados da Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. O mandado de prisão contra ela era válido até 2042 e foi confirmado pelas autoridades policiais na delegacia para onde foi levada pela Guarda Civil Metropolitana (GCM)” e que “no Boletim de Ocorrência registrado não há qualquer menção a conduta inadequada por parte dos guardas municipais na abordagem”.


Afirma ainda que “o Programa Smart Sampa segue protocolos rígidos para garantir sua eficácia e todos os alertas emitidos pelo sistema passam obrigatoriamente por checagem dos agentes, como medida adicional de segurança. Ele considera elevados padrões de segurança da informação em respeito à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) e não utiliza fatores como cor da pele e etnia em sua análise. As câmeras inteligentes do programa já foram responsáveis pela captura de 1.008 foragidos da Justiça, prisão em flagrante de 2.245 criminosos e a localização de 55 pessoas desaparecidas. Em relação à atuação das forças de segurança em equipamentos públicos, ela é mais uma medida de proteção aos cidadãos e todas as ações são conduzidas com respeito aos protocolos legais e aos direitos humanos.”


Tecnologia não é à prova de erros

A prefeitura diz que o sistema Smart Sampa emite alertas quando há 80% de similaridade com o rosto de foragidos e é necessária a correspondência de 92% para acionar uma abordagem. Mas nem sempre o reconhecimento acerta.


O portal UOL mostrou o caso de um idoso de 80 anos que foi preso por engano após ser confundido com um estuprador foragido pelas câmeras do Smart Sampa, também em uma unidade de saúde. Apesar de não ter os mesmos dados pessoais do criminoso e nem os mesmos traços físicos (um é branco e outro é pardo), o idoso ficou 10 horas sob custódia da polícia. Após o episódio, o homem passou a sair de casa apenas de óculos de sol e moletom para não correr novos riscos.


O Smart Sampa é uma das principais bandeiras do prefeito Ricardo Nunes (MDB) para a segurança pública – que é considerado o principal problema da cidade para 74% dos habitantes. Tanto que Nunes inaugurou com pompa o “prisômetro”, um painel de led que exibe em tempo real as prisões realizadas pelo sistema, no centro da cidade.


De olho em uma possível candidatura ao governo de São Paulo em 2026, Nunes busca se alinhar ao estilo “linha dura” do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), em cujo governo a letalidade policial aumentou mais de 100% entre 2022 e 2024. O aumento da violência policial, contudo, não resultou na redução de todos os crimes violentos: houve queda nos homicídios – tendência que vem sendo registrada desde 2015 –, mas houve mais casos de estupro, feminicídio e latrocínio.


O estilo Tarcísio de conduzir as polícias é aprovado por 53% dos brasileiros, com a aprovação subindo para mais de 60% entre os moradores do Sudeste. Nunes, que contou com o apoio do governador em sua campanha de 2024, tenta agora recuperar o atraso na área da segurança após um primeiro mandato com poucos avanços.


O prisômetro foi instalado na véspera do carnaval deste ano, para alardear prisões feitas em blocos de rua. A Defensoria Pública criticou a medida, argumentando que os foliões têm direito a se manifestarem livremente sem a vigilância da prefeitura. No início deste mês, as câmeras também começaram a ser instaladas em ônibus.

Prisômetro foi instalado pelo prefeito na véspera do carnaval deste ano

A Defensoria atua em duas ações que contestam o programa por possíveis violações a direitos fundamentais e à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Também questiona a ausência de regulamentação legal e o uso de pregão eletrônico na licitação, apesar da complexidade do sistema, que exigiria um projeto com estudos de impacto. As ações ainda estão em tramitação.


“Em nenhum momento, a Defensoria recomenda institucionalmente que prisões decorrentes de mandados judiciais deixem de ser cumpridas com o auxílio da tecnologia. Defende, no entanto, que sua aplicação ocorra com transparência, controle e respeito aos direitos de toda a população”, diz a instituição.


O Tribunal de Contas do Município chegou a suspender o programa por possíveis danos à LGPD, mas voltou atrás após a prefeitura prestar esclarecimentos.


O programa conta hoje com 25 mil câmeras, com a promessa de chegar a 40 mil até 2028. A licitação foi cheia de idas e vindas, com questionamentos das empresas participantes, e acabou sendo vencida pelo Consórcio Smart City SP – que tem uma das empresas participantes acusada de envolvimento em casos de corrupção – ao custo de R$ 9,8 milhões por mês. Além disso, a prefeitura também recebe imagens de cerca de 5 mil câmeras de vigilância de empresas privadas.


Há poucas informações sobre como é feita a proteção de dados pessoais e como o sistema evita vieses raciais – já que os programas costumam ser treinados em pessoas brancas e tendem a dar mais erro na identificação de pessoas pretas ou pardas. A Prefeitura apenas garante que o programa segue protocolos rígidos e tem aprovação popular.


Um levantamento do Panóptico, monitor de novas tecnologias na segurança pública, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), identificou que há 376 projetos que usam reconhecimento facial no Brasil atualmente, monitorando mais de 82 milhões de pessoas.


Ao mesmo tempo em que a tecnologia mira os rostos de cidadãos 24 horas por dia, Nunes ainda não tem nenhum plano para colocar câmeras corporais nos agentes públicos da Guarda Civil Metropolitana – mesmo já tendo sido alvo de inquérito pelo Ministério Público.


Edição: Mariama Correia

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BYD passa a vigiar funcionários após denúncia de maus-tratos a operários chineses na Bahia

A BYD instalou câmeras, proibiu fotos e instalou programa do governo chinês em computadores desde que divulgamos que operários chineses foram vítimas de maus-tratos e agressões físicas dentro da planta da obra, na Bahia.

A BYD, líder global na produção de carros elétricos, passou a vigiar os funcionários brasileiros que atuam na instalação da fábrica na Bahia desde que a Agência Pública divulgou que operários chineses foram vítimas de maus-tratos e agressões físicas dentro da planta da obra, mostra nova denúncia exclusiva.


De acordo com informações obtidas pela reportagem, a empresa instalou câmeras de filmagem nas áreas administrativas e nos galpões de obras e fixou cartazes proibindo expressamente que fotografias fossem tiradas nesses espaços.


Além disso, segundo a denúncia, foi instalado um programa de computador que cria uma marca d’água com nome de cada funcionário para identificar de que máquina partiu materiais compartilhados com o público externo.


Para informar sobre esse programa, a BYD enviou um email no dia 18 de dezembro do ano passado, ao qual a reportagem teve acesso, explicando as novas diretrizes adotadas.


Na mensagem, a empresa informa que a instalação foi feita pelo “departamento de Tecnologia da Informação da China”, e que “essa marca informa o nome do usuário logado no equipamento, nome do equipamento e a data atual”. A empresa explicita claramente que “essa medida visa evitar possíveis vazamentos de informações”.


Todas essas ações começaram a ser implementadas logo após a Pública ter divulgado com exclusividade, em novembro do ano passado, a denúncia de que operários trazidos da China estavam sendo submetidos a condições precárias de trabalho, vivendo aglomerados em alojamentos sujos e mal iluminados. 


Com relatos, imagens e vídeos, a reportagem mostrou que muitos operários atuavam sem equipamentos de proteção individual, submetidos a rotinas de 12 horas por dia, sofrendo agressões físicas em caso de descumprimento de ordem ou atraso no prazo da obra.


POR QUE ISSO IMPORTA?

A fábrica da BYD é a primeira da empresa no país, teve um investimento anunciado de R$ 5,5 bilhões e é um dos principais projetos do governo estadual.

No dia 23 de dezembro, menos de um mês após a denúncia, o Ministério Público do Trabalho (MPT) resgatou 163 operários chineses, contratados pela empresa Jinjiang Group – uma das três terceirizadas da China com que a BYD fechou parceria para montagem da fábrica na cidade baiana de Camaçari, polo industrial do estado.

Além das péssimas condições para o exercício do trabalho, o MPT identificou que os operários estavam sendo submetidos a condições análogas à escravidão, com passaporte e parte do salário retidos pela Jinjiang. Cerca de 60% dos proventos eram confiscados e o restante pago em moeda chinesa para evitar o abandono do emprego.


 setor de terraplanagem (preparação do terreno para a obra), pelo qual a Jinjiang era responsável, foi completamente embargado pelos auditores do MPT – situação que ainda persiste.


A situação chegou a levar o governo brasileiro a suspender a emissão de vistos de trabalho temporários para a BYD no final de dezembro.


Procurada para explicar a instalação das câmeras e do programa que identifica o perfil dos usuários, a BYD disse, em nota, que “medidas relacionadas à proteção de segredos industriais são práticas comuns e essenciais em indústrias de ponta, especialmente para empresas líderes em inovação tecnológica”. 


A empresa informou ainda que “essas ações refletem a responsabilidade de proteger ativos estratégicos e são adotadas de forma consistente, respeitosa e dentro da lei em todas as unidades de negócios do grupo”, refletindo a “responsabilidade em preservar a integridade de nossas operações”, uma vez que a BYD diz solicitar, em média, “45 patentes por dia útil”.


Na nota, a BYD não explicou por que só passou a adotar tais “medidas de proteção industrial” apenas após as denúncias sobre maus-tratos aos operários chineses virem à tona, já que a empresa começou as obras na Bahia em março do ano passado.

Após denúncias, BYD instalou câmeras e monitoramento rigoroso na fábrica

Caças às bruxas na fábrica chinesa

Esse posicionamento da BYD de vigiar os funcionários na tentativa de evitar novos vazamentos de possíveis irregularidades contrasta diretamente com o discurso público adotado pela empresa, desde que as denúncias vieram à público. 


Após ação do MPT, a montadora chinesa informou, por nota, que “não tolera desrespeito à lei brasileira e à dignidade humana”. E, diante disso, “decidiu encerrar imediatamente o contrato com a Jinjiang”. Leia a nota na íntegra.


A BYD anunciou que os 163 operários resgatados foram levados de volta para casa e receberam os valores que lhes eram devidos em contrato.


Nos bastidores, a BYD instalou 135 câmeras em vários espaços – em muitas ocasiões, mais de um aparelho no mesmo cômodo.


Pessoas ouvidas pela reportagem citaram um clima de “caça às bruxas” para tentar descobrir e punir os supostos responsáveis, mesmo sem nenhum tipo de comprovação de que o material da primeira reportagem tenha partido de funcionários da BYD.


Um escritório jurídico de São Paulo, a Urbano e Vitalino Advogados, foi designado para dar suporte durante a crise. Em nota, a BYD disse que o escritório já prestava serviços para a BYD anteriormente e tem “colaborado nas questões relacionadas às empresas contratadas para realizar as obras em Camaçari”.


Segundo a reportagem apurou, jornalistas da FSB – uma das maiores agências de assessoria do Brasil – desembarcaram na Bahia para reforçar o time de atendimento à imprensa neste período. Após a publicação, a assessoria da empresa respondeu que a FSB atua com a BYD com contratos de longo prazo e a ida à fábrica ocorre de forma pontual.


Em dezembro, com ajuda de tradutores chineses, o presidente da BYD no Brasil, Tyler Li, conversou com os funcionários brasileiros, quando teria reforçado a importância do empreendimento no Brasil.


Segundo os relatos, ele teria garantido que os funcionários brasileiros que trabalhavam na parte administrativa da Jinjiang – e não sofreram maus-tratos e agressões – não perderiam seus empregos com o fim do contrato com a empresa chinesa, mas isso acabou não acontecendo. Parte dos funcionários já estaria de aviso prévio e vai deixar a obra em fevereiro.


Em nota, a BYD disse que os colaboradores brasileiros da Jinjiang serão considerados em um processo seletivo conduzido pela equipe de recursos humanos da empresa. E os que atenderem aos requisitos dos cargos disponíveis “serão integrados ao time”. 


A BYD disse que está comprometida com o Brasil e com Camaçari – e tem o intuito de transformar a cidade baiana no “Vale do Silício da América do Sul”.


Denúncias geraram caça às bruxas para identificar vazamentos na BYD, segundo fontes

Governador da Bahia e prefeito defendem BYD

Na semana em que a Pública divulgou a denúncia de maus-tratos aos trabalhadores, o governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), participou de um evento na planta de obras da BYD. A cerimônia já estava marcada antes da publicação da reportagem.


Indagado por jornalistas sobre a atuação da empresa, Rodrigues se limitou a dizer que confia na BYD, citando o histórico do seu partido em defesa do trabalhador.


“Nós somos um governador e um presidente de classe operária. Uma classe rural, oriundos de famílias pobres que sabem muito bem o que significam boas condições de trabalho”, disse na ocasião.

Vice Presidente da República Geraldo Alckmin e o governador da Bahia Jerônimo Rodrigues (PT) durante cerimônia da BYD em Camaçari

Nesse mesmo evento, o ministro da Casa Civil e ex-governador da Bahia, Rui Costa (PT), também esteve presente, mas não falou com a imprensa.


No mesmo mês, o prefeito de Camaçari, Luiz Caetano, também do PT, saiu em defesa da empresa, dando a entender que há interesses de concorrentes para desgastar a imagem da BYD.


“Obviamente que o que tem de errado tem que ser corrigido, os direitos dos trabalhadores são invioláveis. Tanto assim que [a BYD] já retirou a empresa. Foi rápido. […] A ação da BYD aqui dentro é uma revolução da tecnologia para o estado da Bahia e do Brasil. Ela [a BYD] está invertendo o gráfico da produção industrial de automóveis e, obviamente, os concorrentes vão para cima para tentar desgastar”, afirmou.


O governador Jerônimo e o presidente Lula têm tratado a instalação de uma fábrica da BYD no estado como parte de uma estratégia de aproximação com os chineses, fortalecendo a empresa no mercado nacional e fazendo frente à Tesla, do bilionário de extrema direita Elon Musk, principal concorrente na produção de carros elétricos.


O terreno onde a empresa chinesa está construindo sua fábrica em Camaçari foi da Ford por quase 20 anos. Isso até 2021, quando a montadora dos EUA decidiu encerrar sua produção de automóveis no Brasil. 


O governo baiano, então, resolveu comprar o terreno de 4,6 milhões de metros quadrados e revender à BYD pelo valor de R$ 287,8 milhões, como forma de atrair a instalação da primeira fábrica de carros elétricos no país.


A montadora chinesa estima produzir 300 mil carros por ano no Brasil e diz que tem potencial de gerar “mais de 20 mil empregos”.  


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O significado da crítica ao identitarismo

A luta contra as opressões impostas a grupos específicos – e que não se reduzem à exploração econômica – precisa continuar avançando. O discurso liberal que tenta ocultar as causas estruturais da opressão e das desigualdades, não

Toda a possibilidade de diálogo e entendimento mútuo se desfaz quando a lógica e a interpretação da linguagem são desprezadas. Um fenômeno muito comum, recorrente e – preciso dizer – irritante, é a identificação de uma crítica contextualizada com uma crítica absoluta. Explicarei com um exemplo fictício, de fácil entendimento, para depois aplicar a explicação para o caso concreto da crítica ao identitarismo.

Quando se critica a monocultura do eucalipto, o eucalipto não está no núcleo da crítica e a referência a ele está contextualizada. Ou seja, a relação da crítica com o eucalipto só existe no caso em que o plantio dessa espécie se torna uma cultura única em determinada região e quando há argumentos sólidos a respeito dos problemas relacionados a essa cultura. Não se trata de uma crítica absoluta e genérica à arvore de eucalipto, às suas propriedades como planta ou aos que as plantam em quaisquer circunstâncias. Consequentemente, não faz nenhum sentido rebater as críticas à monocultura do eucalipto evocando as propriedades medicinais da espécie, sua importância como árvore ou seus inúmeros usos possíveis, pois o foco da crítica é a monocultura, não a importância, o uso e os recursos oferecidos por essa espécie vegetal.

Todos sabem que, por mais que uma árvore seja importante, o seu cultivo único, em detrimento da variedade de espécies e de outras culturas necessárias (como os alimentos) é prejudicial e pode, portanto, ser criticado sem que isso signifique a rejeição à árvore ou uma proposta de sua total erradicação. Assim, é bem fácil entender que quando alguém diz “não se pode plantar só eucalipto”, essa pessoa não está rejeitando o eucalipto ou negando sua importância e utilidades, mas sim, rejeitando sua exclusividade como cultura agrícola ou a proposta de que a monocultura do eucalipto seja a solução para os problemas gerais da agricultura.


Suponhamos que alguém chame de “eucaliptismo” a concepção agronômica que entende que se deve plantar só eucalipto em toda área agricultável disponível e que o plantio dessa espécie, por si só, é suficiente para atender as necessidades econômicas de um estado. Não faria sentido algum acusar um crítico do “eucaliptismo” de ser contra a árvore de eucalipto, ou de ser inimigo de qualquer plantio de eucalipto, em qualquer circunstância, ou de desprezar a importância dessa espécie e suas propriedades.

Uma pessoa que se dispusesse a usar uma parte mínima de sua racionalidade não responderia às críticas ao “eucaliptismo” com argumentos que evocassem a importância dos óleos, essências, remédios, usos medicinais e higiênicos e outras propriedades da árvore de eucalipto, pois ela saberia que a crítica se dirige à monocultura ou ao reducionismo “eucaliptista” e não à árvore ou ao seu plantio em qualquer hipótese. Tal reação só seria esperada em duas circunstâncias: no caso de uso insuficiente da lógica e da racionalidade – por preguiça ou falta de oportunidade de aprendizado; ou no caso de alguém que tenha interesses ocultos a defender e, por serem tais interesses indefensáveis no debate racional, usa esse argumento como estratagema argumentativo, mesmo sabendo de sua invalidade lógica. Os casos de preguiça ou falta de oportunidade de aprendizado para usar adequadamente a razão podem ser sanados. O da distorção consciente e proposital da argumentação, não.

É surpreendente notar que essa mesma confusão, que representei em um caso fictício, tem sido incomodamente recorrente quando aplicada ao caso concreto da crítica ao identitarismo. Vejamos.

“Identitarismo” não é uma escola de pensamento ou uma doutrina elaborada. É uma forma de agir e compreender a luta política, com diversos nuances e particularidades que não permitem, ainda, uma definição de léxico. Mas, podemos apresentá-la com uma definição instrumental, com objetivo de se identificar a que se refere o termo. Trata-se de uma concepção – nem sempre sustentada com consciência de suas fundamentações teóricas, mas muito presente no discurso político e na ação militante atual – que reduz a emancipação social à solução dos problemas relacionados às identidades oprimidas (negros, mulheres, LGBTQIAP+, PCD’s etc.), que desconhece a universalidade de pautas unificadoras capazes de conectar grupos sociais mais amplos e diversos e que deixa de lado todas as outras questões mais gerais relacionadas à dominação política e econômica dos povos da Terra e às causas estruturais das opressões e explorações. A compreensão rigorosa das estruturas que geram a exploração de um povo, dentro do qual ocorrem as opressões particulares, e de seu desenvolvimento histórico, bem como a discussão sobre as alternativas para se enfrentá-las, são dispensadas em nome de uma percepção imediata e fragmentada dos problemas identitários.

Por não considerarem a raiz histórica e material das opressões, o campo de batalha identitarista se torna a linguagem e as ações militantes são sempre simbólicas e performáticas, nunca estratégicas. Os opressores a serem derrotados são os que não compartilham os mesmos marcadores de identidade ou não se comunicam com os mesmos símbolos e padrões linguísticos determinados pelos seus grupos. Dessa forma, os identitaristas podem ter como inimigo mortal um estudante universitário branco, trabalhador, morador de periferia, apenas por ele não compartilhar o universo simbólico e linguístico dos grupos identitários; mas, ao mesmo tempo, podem ter como aliados os produtores milionários de um reality show, franquia internacional multimilionária reproduzida pela maior rede de televisão da América Latina e defensora das ideias e valores dos donos do capital, se esses reproduzirem suas linguagens e símbolos. Ou podem recusar o pensamento de uma intelectual de esquerda branca de classe média, por ser formada por “pensadores europeus”, e, ao mesmo tempo, aceitar e propagar a lição da megacorporação capitalista estadunidense, a Walt Disney Company, proprietária da Marvel, quando transmitida por meio de um block buster de super-heróis negros.

Identitarismo é uma espécie de “monocultura” da ação sociopolítica. Refere-se à exclusivização das pautas relacionadas às identidades na luta social e à redução da abordagem de todos os problemas ao discurso esotérico (ou seja, que só é compreensível para os iniciados) construído a partir dos marcadores dessas identidades. Não fazem parte do núcleo e da ação identitaristas os aspectos estruturais da exploração e opressão, a relação dos problemas com a economia e o jogo político real, a universalidade unificadora possível da ideia de classe, as questões de estratégia e tática, a captura das pautas das minorias sociológicas pelas empresas capitalistas, sua adaptação ao universo ideológico liberal, a visão de totalidade e complexidade da sociedade e inúmeras outras coisas implicadas no processo de emancipação.

A crítica ao identitarismo é uma crítica a essa concepção e não à necessária luta contra as opressões que são vividas por grupos específicos e que não se reduzem à exploração econômica. Na verdade, essas lutas e suas respectivas organizações no mundo (de mulheres, negros, indígenas, minorias étnicas, pessoas com deficiência) são travadas bem antes do discurso identitarista entrar em cena, na esteira da onda acadêmica pós-moderna que passou a dominar o imaginário progressista nos anos 1990. Ou seja, trata-se de uma crítica contextualizada, dirigida a um campo específico de concepções e práticas. Não é uma crítica absoluta ou genérica sobre as pautas identitárias e, muito menos, um desprezo ou desconhecimento das lutas históricas dos grupos oprimidos, pois essas lutas não foram iniciadas pelos identitaristas e, portanto, eles não são seus “titulares”.


O identitarismo tem consequências no discurso e na prática da militância política, que se refletem na escolha dos adversários e aliados, nas propostas apresentadas à sociedade, na composição da discursividade de um campo de ação social, nas alianças estabelecidas, nos espaços de ação, na relação com a política institucional, na adesão do povo à luta etc., o que gera um tipo de ativismo com certas características específicas e que pode, com todo o direito, ser criticado por aqueles que estão envolvidos na práxis social pela emancipação.

Deveria ser óbvio que a crítica ao identitarismo e a suas formas de expressão não significa uma crítica ou rejeição às próprias pautas identitárias ou à luta dos grupos que se unem contra a opressão a partir da percepção de uma identidade oprimida comum, que precisa de ações e políticas especificas. Portanto, não deveria fazer sentido contrapor à crítica ao identitarismo os argumentos que valorizam a luta dos grupos oprimidos. Tampouco é inteligente acusar os críticos do identitarismo, do campo de esquerda, de serem favoráveis às opressões que recaem sobre esses grupos, ou de não se importarem com elas, ou de fazerem parte de “grupos privilegiados” que seriam supostamente ameaçados em seus privilégios pela luta dos oprimidos etc. Isso não faz o menor sentido, pois fere a lógica e interdita o debate racional.

No exemplo do “eucaliptismo”, esse esclarecimento pareceu evidente, primário e até desnecessário. Qualquer um o teria por óbvio. Por isso, ficam grandes questões no ar, quando se trata de aplicar o mesmo raciocínio ao identitarismo: por que tem sido tão difícil fazer as pessoas entenderem que não faz sentido responder aos críticos do identitarismo com argumentos que ressaltam o sofrimento dos setores oprimidos e a importância de suas lutas? Por que ainda devemos nos esforçar para explicar que não é inteligente acusar os críticos do identitarismo de racismo, homofobia, capacitismo, machismo etc. (a não ser que eles cometam atos que possam realmente ser julgados como tal – o que sempre é possível para qualquer pessoa), visto que a crítica é a uma concepção sobre as pautas e não às pautas em si mesmas?

Será que estamos simplesmente perdendo a capacidade de raciocinar ou há uma intenção de se ocultar (ou fechar os olhos para) o fato de que o identitarismo é uma concepção liberal das lutas das minorias sociológicas, que tem sido nociva para a organização de uma esquerda forte, madura e coesa, capaz de oferecer verdadeira resistência ao neoliberalismo e a seu amálgama com o fascismo e de propor alternativas viáveis para a catástrofe humana e ecológica representada pelo capitalismo global?

A dominação ideológica dos que têm hegemonia na sociedade, desde o final dos anos 1980, não se faz apenas sobre os que não se organizam. Eles aprenderam muito bem que também podem e devem iludir os grupos sociais “rebeldes” com suas lições de como fazer ativismo social sem se voltar contra as estruturas econômicas ou a gestão da economia. Se está na moda falar no “pobre de direita”, temos também que colocar em pauta o “esquerdista liberal”, ou o “militante radical patrocinado”. É hora de perder o medo de falar desse assunto.

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